sábado, 2 de fevereiro de 2013

As nossas muitas mortes

 J. J. CAMARGO*
 
Perder uma pessoa amada é um estímulo a repensar o que somos e o que significamos. Mesmo sabendo que começamos a contagem regressiva justo no dia em que nascemos, nunca conseguimos pensar na morte com naturalidade, ainda que ela seja a maior de todas as certezas.

Fernando Pessoa disse que “morrer é não ser mais visto, morrer é a curva da estrada”, mas talvez a tal curva seja apenas o começo da morte, porque a mais dolorosa de todas elas é o esquecimento. Quando ninguém mais lembrar quem fomos e o que fizemos, eis o dia da nossa morte, a definitiva. Porque, quando morremos, deixamos para trás o que possuímos e a memória do que significamos. E levamos o que merece ser esquecido, e será.

Por meio de Júlio César, que tentava acalmar Calpúrnia, sua mulher, dizendo-lhe que iria ao Senado, sim, e que não havia o que temer, pois “os bravos encontram a morte uma só vez”, William Shakespeare nos ensinou que ela pode ser hierarquizada por dignidade. Segundo ele, “os covardes morrem muito antes de morrer”.

As dolorosas renúncias foram identificadas por Albert Schweitzer como uma espécie de morte quando escreveu que “a maior tragédia do homem é o que morre dentro dele enquanto ele ainda está vivo”. J. G. de Araújo Jorge identificou a morte fragmentada na infelicidade crônica ao reconhecer que “há tanta gente sem sorte, morrendo desde o nascer, que no dia em que chega a morte, já não tem mais o que morrer”.

Gabriel García Márquez estava em um autoexílio em Barcelona, saudoso de casa e do mundo que deixara para trás, quando teve um sonho muito estranho. Sonhou com a sua própria morte e pôde rever no seu velório todos os queridos amigos sul-americanos, dos quais sentia muita falta. Todos estavam muito bonitos e bem vestidos e pareciam felizes com o reencontro.

Comeram, beberam e se abraçaram como nos velhos tempos. Difícil saber se a alegria era pela reunião dos afetos dispersos ou simplesmente por estarem vivos. Quando, no fim da tarde, todos já cansados se preparavam para partir, o Gabo seguia abraçado com eles, quando foi advertido por alguém de que não poderia mais acompanhá-los porque, afinal, ele estava morto.

Quando despertou, ele tinha aprendido que morrer é isto: nunca mais estar com os amigos.
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* Médico
Fonte: ZH on line, 02/02/2013
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