quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

“Não há razão para salvar os bancos”, afirma filósofo canadense

 
A perseguição do Santo Graal do crescimento 
é um erro; a economia converteu-se em ficção;
 o dinheiro já não representa nada real; é preciso reconsiderar o que é uma dívida e que papel devem desempenhar os bancos em um novo mundo. 
Estas são algumas das ideias 
que vertebram o pensamento de John Ralston Saul
escritor, ensaísta e filósofo canadense a 
quem a revista Time qualificou de “profeta”

Por mais alternativo que possa parecer seu discurso, Ralston está longe de ser, aos seus 64 anos, um perroflauta. Alto, magro e de andar elegante, faz acompanhar seu aspecto elegante com um discurso sem panos quentes. Não renega o capitalismo; de fato, reivindica uma das referências do liberalismo, Adam Smith. Mas propõe medidas, tais como: o resgate dos cidadãos despejados ou sepultados por uma hipoteca, em vez de salvar bancos que só farão com que a espiral da dívida siga crescendo.

Uma poderosa citação encabeça seu último livro, O colapso da globalização e a reinvenção do mundo: “Ainda não entendi inteiramente por que aconteceu. Alan Greenspan, 23 de outubro de 2008”. A frase do ex-diretor do FED norte-americano dá a medida da confusão criada pela crise, inclusive entre aqueles que a incubaram. E é essa confusão que este pensador canadense, que nada na contracorrente, vem enfrentando nos últimos anos.

A entrevista é de Joseba Elola e está publicada no jornal espanhol El País, 05-02-2013. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Estamos imersos em um período sombrio da economia, e não parece que as coisas melhorem substancialmente, nem no mundo, nem na Espanha, nem...

Existe uma nova religião absoluta do crescimento, do comércio, da santidade da dívida e dos contratos comerciais, com a qual tentam nos fazer crer o quanto os políticos são inteligentes e o quanto nós, os demais, somos estúpidos. Da na mesma, por pior que seja a situação atual, eles seguem aplicando as mesmas receitas, fazendo o mesmo. É isso que se está fazendo na Espanha e em todo o mundo. O sistema avança na mesma direção. Os problemas que existem estão se agravando. Ninguém reconhece qual é o autêntico problema. O crescimento não vai nos tirar de onde estamos; a austeridade, também não. Veremos como as democracias resistem a tudo isto. Estão colocando a democracia em perigo.

Ralston é um homem de discurso ágil e fluido, sem papas na língua. Encontramo-nos com ele no restaurante de um hotel no centro de Barcelona. A revista norte-americana de pensamento alternativo Utne Reader o colocou entre os 100 pensadores e visionários mais importantes do mundo. Autor de 16 livros (entre eles, o ensaio filosófico Os bastardos de Voltaire. A ditadura da razão no Ocidente) e de cinco romances que foram traduzidos para 22 idiomas, Ralston Saul é, além disso, o presidente do PEN International, associação de escritores que data a 1921 e que luta pela liberdade de expressão em todo o mundo.

Em 2005, três anos antes que se desencadeasse a crise, publicou o livro O colapso da globalização e a reinvenção do mundo, que já vendeu 400.000 exemplares, segundo dados proporcionados pela sua editora, a RBA. Nele analisava o fracasso dos critérios que orientam o sistema das relações econômicas e financeiras entre países, explicava a crise de um modelo e antecipava um colapso. Em 2009, à vista de que algumas de suas previsões haviam se cumprido, reeditou com acréscimos um livro que chega agora em sua versão espanhola, com um prólogo que aborda questões como o resgate do Bankia.

No livro você defende que o dinheiro não é real e que nos convertemos em seus escravos. Fala em que vivemos em uma economia fictícia. E diz que nos anos 1970 o comércio era seis vezes o valor dos bens e que em 1995 era 50 vezes mais. Quantas vezes é agora?

Ninguém sabe, mas deve estar ao redor de 150. O mais vergonhoso é que os números não estão disponíveis, ou ao menos não pude encontrá-los.

E o que isso significa?

A ironia é que a globalização levou ao oposto do que prometia. Prometeu competição, e causou o retorno dos oligopólios; prometeu renovação do capitalismo, e significou a volta ao mercantilismo; prometeu o fim do nacionalismo feio [defende que também há um nacionalismo positivo], e traiu a era mais nacionalista desde o final da Segunda Guerra Mundial. Prometeu crescimento, não temos crescimento; prometeu emprego, não temos emprego... e assim se pode continuar com a lista. Nada do que prometeu, aconteceu. Disseram que com o keynesianismo se imprimia muito dinheiro; que se devia controlar o dinheiro em circulação e que isso faria a economia funcionar. O fato é que todo este período levou à maior expansão na quantidade de dinheiro na história do mundo, vimos centenas de exemplos de novos tipos de dinheiro: os cartões de crédito, os bônus lixo, os derivados. Tudo isso é imprimir dinheiro, pura inflação da quantidade de dinheiro. O argumento capitalista era que o dinheiro engraxava a máquina. Mas chegou um momento em que disseram: o dinheiro é real, por isso é bom ter pessoas trabalhando no setor financeiro. As fusões e grandes aquisições de empresas? Isso é imprimir dinheiro. Cada vez que uma companhia compra outra e se endivida em, digamos, 700.000 dólares, isso quer dizer que se acaba de imprimir 700.000 dólares, acabam de criar 700.000 dólares que antes não existiam. Nunca tivemos tanto dinheiro circulando no mundo e tão mal distribuído. E por isso, quando ocorre a crise, as pessoas que fazem parte dessa lunática inflação dizem: é preciso salvar os bancos.

E não se deve resgatar os bancos?

Não há razão para salvar os bancos, não necessitamos de tanto dinheiro. O razoável teria sido aproveitar a oportunidade para limpar a desordem. Basta tomar o exemplo espanhol do Bankia. Uma boa política teria sido, por exemplo, que o Governo anunciasse que pagaria todas as hipotecas até uma determinada quantidade, digamos 300.000 euros. Dá-se o dinheiro às pessoas que estão em sua casa e que têm uma hipoteca, e de fato se salva os bancos: é o cidadão que dá o dinheiro aos bancos ao pagar sua hipoteca. Logo, as pessoas já não têm dívidas e podem gastar o que ganham. Assim se cria uma classe proprietária e, além disso, se relança a economia. É tão simples.

E isso é possível?

Evidentemente. Para mim a pergunta é: é possível que demos todo esse dinheiro aos bancos, que foram os que criaram o problema, para que não gastem esse dinheiro e para que continuem concedendo-se a si mesmos enormes bônus? Isso é possível? Isso é legal? Vamos, deixe-me respirar! Há outra coisa: não queremos salvar todos os bancos, não queremos tanto dinheiro, assim que pagamos 150.000 euros dessas hipotecas e pagamos o resto da dívida, 150.000. Os Governos têm o poder para fazê-lo. Desse modo, 150.000 euros não retornam aos bancos, limpa-se o sistema bancário, e reduz-se a quantidade de dinheiro que circula, o que é algo positivo.

Mas não deve ser tão fácil de fazer. Por exemplo, as pessoas locadoras se sentiriam prejudicadas.

Teria que se estudar os números. A política econômica é tentar mover as coisas em uma direção boa. Não significa fazer exatamente a mesma coisa em cada lugar, nem significa que se tenha que fazer tudo ao mesmo tempo. Resolve-se primeiro esse grande problema e depois se faz um programa para aluguéis de forma que as pessoas possam comprar a casa que estão alugando. É possível fazer mais coisas. Por exemplo, dar uma renda mínima às pessoas em vez de colocá-las nas filas para acessar prestações, subsídios e ajudas, em vez de humilhá-las examinando seus requisitos uma e outra vez; ajudas que, além disso, são caras de administrar... Muitos conservadores, liberais e socialdemocratas responsáveis estão de acordo em que seria muito melhor uma renda garantida anual. Representaria liberar a sociedade, devolver às pessoas o respeito por si mesmo. As pessoas humilhadas ou marginalizadas se sentiriam parte da sociedade. É curioso, mas há muita gente que está de acordo com estas ideias.

Ah, sim? E onde estão esses conservadores e liberais que pensam assim?

Em todas as partes! Não estão entre os neoconservadores, mas entre muitos conservadores. Muitos empresários acreditam nisso. Mas como o debate se perde nos pequenos detalhes e a ideia dominante é que é preciso reduzir o peso do Estado, ninguém coloca estas questões sobre a mesa.

Que possibilidades há para que algo como o que relata possa ser levado a cabo?

Há possibilidades, evidentemente; foram possíveis muitas outras coisas nos últimos anos. Por exemplo: a classe executiva do setor privado conseguiu, pressionando os Governos, regulações que converteram a fraude em algo legal. Assim estão esses conselheiros delegados recebendo bônus e participações nas ações, ganhando milhões cada ano: mas, se só são gerentes! Estão no posto por cinco anos, irão jogar golfe quando se aposentam, não são ninguém! Ninguém sabe seus nomes, não fizeram nada em particular! Deveriam cobrar esses bônus quando a empresa vai mal? Esse não é o debate. O debate é: devem receber bônus? Se já lhes pagaram! Usaram sua influência para mudar o sistema tributário em todos os países para não ter que pagar muitos impostos por esses bônus. Isso é fraude. Provavelmente, os dois exemplos mais evidentes de fraude desde a Segunda Guerra Mundial são: a mudança nas disposições de ingressos dos executivos, fraude evidente legalizada, e a transferência da dívida privada dos últimos anos ao setor público.

A União Europeia está corroída pela dívida...

Há quem coloque os eurobônus como solução para a crise europeia. Estamos de brincadeira? Eu digo: acabemos com a dívida. Como não podem admitir que se equivocaram fazem com que os bônus sejam algo que lhes permite recolher toda a dívida, colocá-la nos bônus e vendê-los. Estão colocando a civilização europeia sob o peso de uma dívida que não existe. Se tivessem um pouco de imaginação e um pouco de coragem, convocariam uma reunião e diriam: sim, os espanhóis agiram mal e os gregos fizeram coisas horríveis com isto, mas nenhum de nós é parte inocente; como podemos zerar o cronômetro? Basicamente, vamos envolver parte desta dívida em um envelope, escreveremos no envelope a seguinte frase: “Isto é muito importante”, o colocaremos num caixão, o fecharemos e jogamos a chave fora. É preciso virar a página, superar tudo isso. Em vez disto, estão tentando fazer o mesmo que vêm fazendo durante anos, mas como se não o fizessem.

Uma proposta surpreendente...

A minha proposta é responsável e honesta. Eles estão fazendo uma proposta delirante e incrivelmente complicada que não vai funcionar e que não nos leva a lugar nenhum. E no caminho fazem as pessoas sofrerem. O que pensam que vão dizer aos gregos quando reduzirem o salário mínimo em 22%? Está claro que isto é como uma questão religiosa. Como a economia é a nova religião, aplicaram a moral à economia. A dívida pública tem peso moral, mas a privada não. Como se digere isso? Este é um dos fracassos da globalização. Se o setor privado pode se livrar da dívida, o setor público também pode.

Mas, então, o que vai acontecer, que a dívida na realidade não existe?

A verdade é que não. O dinheiro é uma convenção. Uma árvore é real, o dinheiro é uma convenção. Os néscios, quando chega a crise, estão convencidos de que o dinheiro é real. Henrique IV foi considerado como o Bom Rei porque a França estava mergulhada numa dívida e a fez desaparecer; a partir desse momento viveram 250 anos de prosperidade, por tirarem a dívida; Atenas construiu toda a sua história após ter se livrado da dívida; o império norte-americano está inteiramente construído sobre um perdão, se perdoaram a dívida, em média, cinco vezes entre a guerra civil e 1929; a riqueza dos Estados Unidos ao longo do século XX está inteiramente construída sobre o fato de não terem pago sua dívida em 1929: emprestaram dinheiro da Europa, nos mercados, e com isso construíram trens, estradas, arranha-céus e tiveram um colapso econômico: quem lhes deu dinheiro o perdeu e eles ficaram com suas infraestruturas. Os Estados Unidos viveram cinco colapsos que, no final das contas, os deixaram livres de sua dívida e permitiram converter-se em líder a partir de 1935.

John Ralston Saul é um homem apaixonado, um orador nato. Não é um anticapitalista. Declara-se partidário de muitos dos preceitos de Adam Smith, da propriedade privada, do mercado, e também dos serviços públicos. Disse que o capitalismo vai continuar. Mas considera que a globalização causou prejuízos. E assinala alguns culpados em seu livro. Cita a Sagrada Congregação para a Propagação da Fé: economistas, executivos, consultores e propagandistas, isto é, jornalistas de economia: “Difundiram a ideia de que o livre comércio, a globalização e a busca do crescimento eram o único caminho rumo à prosperidade”, manifesta.

O ensaísta canadense carrega nas tintas contra a chamada geração do relatório. Sustenta que o mundo está nas mãos de economistas e empresários de capacidades muito limitadas e que em muitos casos são “analfabetos funcionais”. Gente que só contempla o curto prazo.

“Os historiadores econômicos são os intelectuais; os macroeconômicos são os semi-intelectuais que deram forma às ideias, e depois vem as abelhas operárias, que trabalham no micro, que não pensam e só fazem números. Eliminou-se os historiadores porque, uma vez que se tem a verdade, não se quer que o passado seja examinado. Promoveram os semi-intelectuais aos altares. E elevaram os que só fazem números”.

Disse que estamos nas mãos dos últimos. Explica que o apogeu da globalização se deu em meados dos anos 1990, quando o comércio vivia dias de máxima liberalização, os impostos sobre as grandes fortunas eram baixados, as privatizações e as desregulações campeavam por todos os lados e a civilização ocidental abraçava a religião neoliberal e adorava o mercado global.

Você já vem alertando há algum tempo sobre a globalização...

Era possível ver sinais de que a globalização estava chegando ao seu fim desde 1995. A globalização está implodindo pelos defeitos que continha desde o princípio como programa ideológico-filosófico-social. Ainda estamos vivendo suas consequências: se a Espanha desmorona, se a Grécia deixa de ser uma democracia, se no Canadá se produzem problemas internos que o racham, tudo isso, em grande parte, será um resultado da globalização. Eu sou um grande admirador de Stiglitz e Krugman, mas são dois economistas, e não podem evitar isso, que se fixam nos detalhes: teria que fazer isso, teria que fazer aquilo... Fazem bem, mas escapa-lhes a principal questão: a natureza do que está acontecendo, a natureza da besta chamada globalização.

Você defende que a globalização se converteu em religião, em dogma...

O Vaticano, em seus momentos de grande poder, era religião de modo marginal; tratava-se antes de uma questão de política e de poder; com a globalização acontece algo similar: é algo econômico, de modo marginal; é uma questão de política e de controle, de poder; é um modelo social, assim como a Igreja católica o foi ou o império britânico. E se rompe porque como modelo social não funciona e semeia a catástrofe pelo caminho. Na realidade, a globalização vem de um grupo de pessoas bastante marginal que tomou velhas ideias de meados do século XIX passadas de moda. Uma delas era inglesa: o comércio livre, e a outra era o capitalismo de corsários, que remonta ao final do século XIX na Inglaterra e nos Estados Unidos. Uniram as duas coisas e disseram: esta é uma grande ideia. E não pensaram nas consequências da união dessas duas ideias. Na crise dos anos 1970 estávamos com excedentes de produção, não se devia resolver o problema incrementando o comércio, porque já havia muitos bens. Ou seja, a solução que encontraram para o problema era a oposta ao que se necessitava. Levamos 30 anos de assustadora mediocridade intelectual, sem sentido da história, nem imaginação, nem criatividade, sem pensar no que estamos fazendo e para onde vamos: uma grande banalidade com tremendos resultados.
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Fonte: IHU on line, 06/02/2013
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