Paulo Ghiraldelli Jr.*
1. Nietzsche e Deus
Quando Nietzsche disse “Deus está morto”
ele não estava pensando que, junto com Deus, também o Papa havia
passado desta para a melhor. Ao
contrário, ele estava dizendo aquilo que Heidegger notou ao comentar
sua frase: “ora bolas, as igrejas estão cheias”! As igrejas sob o
comando católico e sob qualquer outro comando não se esvaziaram desde o
final do século XIX para cá. Aliás, ganharam mais um adepto importante, o
próprio Deus que, não encontrando outro cemitério, foi para aquela que
era já sua moradia na Terra. Deus morto se refugiou nas igrejas, todos
nós sabemos disso.
Fora das igrejas as pessoas começaram,
principalmente a partir do final do Renascimento, a não consultar mais
Deus para tudo. Ao final do século XIX, Nietzsche constatou a morte de
Deus porque as pessoas não só já haviam absorvido de vez, na vida
cotidiana, o “desencantamento do mundo”, de que falou Weber, mas também
já haviam incorporado uma despreocupação para com as divindades. Ninguém
diria “oh!”, ao ver a luz se acender por conta de um apertão em um
interruptor, ainda que a maioria não pudesse explicar – como ainda não
pode, por falta de escola – o funcionamento da eletricidade. As pessoas
continuaram mais ou menos as mesmas, embora menos “tementes” a Deus.
Elas ainda eram capazes de correr do cinema quando da primeira cena de
uma locomotiva vindo em direção ao público. O “desencantamento do
mundo”, na nossa mente, funciona do seguinte modo, caso expresso em uma
só linha: “não sei explicar os fenômenos da natureza, mas lá na minha
cidade há quem saiba, e ele o faz sem lançar mão da ‘hipótese de Deus’”.
Nietzsche associou essa compreensão, que logo depois dele foi teorizada
por Weber, a uma observação sua própria, vinda do interior da
filosofia. Ele viu crescer diante de seus olhos o positivismo, ou seja, a
mentalidade ainda filosófica que insistia não só em retirar Deus
da vida, mas de colocar no lugar Dele a Ciência. Ora, diante dessa
vitória do positivismo (e de fato eis aí uma doutrina vencedora, na qual
ainda estamos e talvez nem possamos pensar sem ela hoje em dia) ele
realmente percebeu que Deus não poderia mais sair das igrejas, estaria
lá, para sempre talvez, mas como um zumbi.
Nietzsche viu a história de Weber pelo
lado filosófico. É como se ele tivesse falado em “desencantamento do
mundo” de um modo particular, algo por meio de uma frase como
“desencantamento dos filósofos”. Os filósofos teriam decidido não dar
mais crédito para a metafísica enquanto busca do absoluto. Esse
movimento que começou com David Hume, no século XVIII, e veio desembocar
em Augusto Comte no XIX e no neopositivismo do início do século XX, deu
o alimento para a filosofia contemporânea. Mas, é claro, mesmo no meio
filosófico, não foram poucos os filósofos que continuaram simpáticos a
Deus. Só que o Deus dos filósofos sempre foi outra coisa, nunca foi o
Deus do povo. Por mais culta que seja uma pessoa “do povo”, o seu Deus
nunca ultrapassa a condição de uma divindade meio que antropomorfizada, e
a própria doutrina católica ou judaico-cristã dá margem para tal.
Todavia, o Deus dos filósofos não é uma “pessoa” ou algo parecido, é
simplesmente uma ordenação que se põe diante dos homens para dizer:
“aceita o teu destino sem se tornar o que Caim se tornou”. Qualquer um
de nós, de bom senso, pode acreditar em Deus quando este se põe
dessa maneira, como aquele que, escolhendo Abel, deixou Caim à deriva
para ter inveja e matar, não compreendendo que a vida é assim mesmo. Na
vida há a escolha de uns e não de outros e isso não tem a ver com
“merecimento”. Isso tem a ver com a misteriosa e ao mesmo tempo banal
Vontade de Deus ou Feitos do Destino.
Ora, falando assim, Deus aparece não só
como uma situação limite ou situação de destino, mas também com o que
pode ser incorporado a uma postura filosófica acolhida por Nietzsche
(algo que fica entre uma tese cosmológica e uma doutrina ético-moral),
por meio do chamado “amor fati”. Nietzsche seria, então, o mais
devoto filósofo que Deus já teve. Pois caso Nietzsche fosse Caim e caso
esse Caim tivesse lido Nietzsche e acreditado nele, as coisas se
passariam da seguinte forma em sua cabeça: “o destino deu boas vindas
para quem teve um filho antes que para quem trabalhou na Terra, então
nada há a se fazer senão dizer, que sorte teve meu irmão, o destino
sorriu para ele, eu fiz meu esforço agora, plantando, ele terá de fazer
mais tarde, cuidando do filho – que assim seja”. Isso está longe de ser
mera resignação. É uma atitude amorosa para com os fatos. É um
entendimento sábio, na conta de Nietzsche, para enfrentar o Destino ou,
em outras palavras, enfrentar a Escolha de Deus.
Desse modo, até Nietzsche pode ser um
devoto de Deus. Claro, claro, primeiro eu transformei Deus em devoto de
Nietzsche, para depois tornar o filósofo um quase religioso. Mas essa
operação é inevitável nos quadros do que estou narrando, e é
perfeitamente legítima. Todos os filósofos que mantém Deus em mente ou
no coração operam com um Deus que é tomado de modo inteligente, e isso
quer dizer, impessoal. Deus continua tendo vontade, e isso é seu pé
(católico) no antropomorfismo, mas é uma vontade divina, isto é,
superior, algo que está para além do entendimento humano. A vontade de
Deus é misteriosa. Ela é muito mais misteriosa que a Vontade teorizada
por Schopenhauer.
Ora, nesses quadros, o filósofo ateu
ficou tão fora de moda quanto o crente, principalmente após Nietzsche. A
diferença é que tendo o ateísmo se tornado uma doutrina dos mais
torpes, ao menos em nosso meio atual, fugir do evangelismo virou um
imperativo para os filósofos caso eles tenham de fugir do ateísmo. Em
outras palavras, o filósofo é amigo do saber, não da estupidez. Ora, ao
adotar o ateísmo ou qualquer religião, o filósofo tem de tomar todo o
cuidado para não terminar como o inimigo do saber. Mas, adotando o
ateísmo ou a religião, acaba sim sendo o inimigo do saber, pois, afinal,
não pode, como filósofo, deixar de saber tudo isso que elenquei acima:
não pode desconsiderar tudo o que envolve isso que em geral resumimos na
frase “Deus está morto”.
2. O Papa Bento XVI e Deus
Digo tudo isso para lembrar que a formação do Papa que agora começa a se despedir, Bento XVI, está longe de ser simplesmente
teológica. Ela é profundamente filosófica. Ele sabe muito bem – ao
menos desde fevereiro de 2012 – que tendo suas forças se esvaído, cabe a
ele o amor fati nietzschiano. Não tem de ficar rancoroso como
Caim, nem ingênuo e abobalhado como Abel, tem simplesmente de dizer: “o
Destino ou o Limite ou Deus está gritando. Vou ouvir os gritos porque
tenho ouvidos. Não vou me fazer de surdo, já que tenho ouvidos.” Ao
dizer isso (eu acho que ele disse exatamente assim!) Bento XVI mandou
colocar nos documentos oficiais: “dia 28 de fevereiro, às 20 horas, não
serei mais Papa”. Mas então voltará a ser Ratzinger? Não! Ratzinger não
morreu ainda, mas vai ter de morrer. Até dia 28 ele tem de aceitar a
morte. Pois Ratzinger é a ratazana bem parecida conosco que “faz o que
tem de fazer”, ou seja, protege os companheiros, faz política, decide
por acordos que podem ser espúrios, “tentar falar bem da instituição em
que trabalha” etc. Bento XVI não! Bento XVI é o lutador que busca vencer
a todo custo Ratzinger e se tornar santo, honrando a cadeira de Pedro.
Bento XVI tentou fazer isso sinceramente – eu o tomo assim! O modo como
ele quis honrar a cadeira de Pedro foi pensando da seguinte maneira:
“sou um conservador e se estou à frente da Igreja nesse momento, o que
posso fazer para salvá-la é ampliar o seu conservadorismo, afinal, não é
isso que estão todos pedindo, ao debandarem para as igrejas rivais?” E
mais: “O que devo fazer eu? Devo fazer o que não sei fazer, que é aderir
ao restolho de algo inculto como a teologia da libertação, ou devo
fazer eu o que eu sei fazer, que é encontrar argumentos conservadores
para os problemas de um mundo que se moderniza, mas que tem muitos ainda
pedindo pelo conservadorismo?”.
Bento XVI não quis dar uma de Caim. Não
quis se revoltar ao saber que tem, agora, de deixar o papado. Ele
preferiu utilizar de um expediente que, tirando o lado de missionário e,
portanto, de místico, que ele realmente tem, não seria diferente
daquele adotado por quem seguisse o amor fati de Nietzsche. Ele
pensou assim: “o mundo clama por uma igreja conservadora, então, se eu
sou o Papa e sou um conservador, devo cumprir o que é evidente que é a minha missão. Ora, eu a cumpri até agora e é muito justo que eu tenha me esvaído nesse trabalho”.
Isso acima é o que Ratzinger pensou e
está pensando. Mas, de um modo bem nietzschiano, mas sem Nietzsche, isso
condiz com o que passou pela sua cabeça quando ele se tornou Papa. Flash back:
“eu vou fazer o que sei fazer porque fui escolhido Papa. Ora, Deus
poria sua casa na Terra nas mãos de um conservador, em um momento de
crise, caso não quisesse que a Igreja voltasse os olhos para suas
narrativas tradicionalistas?” Foi exatamente assim que Bento XVI
conseguiu entender a razão pela qual Ratzinger, um réptil reacionário,
podia aceitar ter se tornando um super humano, um Papa. O que é um super
humano, um Papa? Alguém capaz de fazer a Igreja Católica navegar num
mundo onde só Malafaia, Waldomiro, Padre Marcelo, Padre Fábio podem não
só navegar, mas navegar e piratear navios vizinhos sem qualquer acusação
legal. Essa justificativa acomodou e acalmou o espírito de Bento XVI.
Foi esse espírito assim refeito que chegou até aqui e chegará até dia 28
de fevereiro, assim ele próprio espera.
Bento XVI está convicto – e isso deixa
todos os crédulos mais convictos ainda – que se ele fez o que fez, ou
seja, deu sobrevida à Igreja, em uma época em que ela não só sofreu por
conta de ataques da história, mas também por conta da concorrência
(desleal, diga-se de passagem), então ele realmente pode se sentir como
tendo sido ungido Papa por Deus. E isso, tomado por olhos filosóficos,
pode ser lido assim: Bento XVI está louvando os fatos, pois ele foi o
escudeiro do Deus ciumento (o Deus Judaico Cristão), no momento de
crescimento de várias igrejas caça-níqueis (e elementos caça níqueis
internos à Igreja Católica), se pondo contra o Deus usurpado e falso
dessas mesmas igrejas.
É claro que um admirador da Igreja
Católica poderia dizer: que história triste essa sua, ao menos diante da
do Deus ou Destino ou Limite de João XXIII ou de João Paulo II. Mas,
então, para o católico (ou qualquer outro) que me dissesse isso, eu
chamaria a ajuda da própria Bíblia, e daria a esse admirador
ranheta o seguinte recado: “olha a história de Caim e Abel, não aprendeu
ainda a amar os fatos, a curtir o destino?”.
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* Paulo Ghiraldelli Jr. , filósofo, escritor e professor da UFRRJ
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2013/02/nietzsche-deus-e-bento-xvi-so-o-ultimo-vai-renunciar/
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