João Pereira Coutinho*
Mas como responder aos direitos das "mães de aluguel"? Ou até dos "filhos comprados"?
É um dos vícios do mundo moderno: a crença patética de que tudo é
possível, tudo é permissível. Ou, como diziam os filhos do maio de 68, é
proibido proibir.
Um caso ilustra esse vício com arrepiante precisão: as "barrigas de aluguel".
Li a excelente matéria de Patrícia Campos Mello publicada nesta Folha no
domingo. E entendo a pergunta que anima o negócio: se um casal não pode
ter filhos por infertilidade da mulher, por que não contratar os
serviços de uma "mãe de aluguel", que terá o seu óvulo fecundado pelo
espermatozoide do pai adotivo?
Na Índia, a pergunta virou turismo: só na cidade de Anand, conta a
jornalista, nasce uma criança a cada três dias para "exportação". Os
"clientes" costumam ser americanos, britânicos, japoneses, canadenses.
Mas também há brasileiros na lista de espera. Que dizer do cortejo?
Começo pelas questões éticas básicas: será que um filho deve ser
comprado (US$ 20 mil na Índia) como se compra uma mala Louis Vuitton ou
um par de sapatos Manolo Blahnik?
E será legítimo, ó consciências progressistas, transformar as pobres do
mundo em incubadoras dos filhos dos ricos? Não é preciso ter lido Kant
para saber que os seres humanos devem ser tratados como um fim em si,
não como um meio para.
Fato: o negócio é voluntário. Todas as partes participam dele com
"autonomia", para usar ainda a linguagem kantiana. Mas o argumento da
autonomia, mil perdões, não chega.
Se chegasse, nada impediria que um ser humano optasse autonomamente por
ser escravo de outro. Vamos permitir o regresso da escravidão, mesmo que
voluntária, desde que o escravo e o seu senhor exerçam os seus papéis
autonomamente?
Não creio. Até porque falar em "autonomia" para gente em situação de
pobreza extrema não passa de uma piada de mau gosto: a "mãe de aluguel"
indiana e a mãe adotiva americana não habitam o mesmo planeta. A segunda
escolhe comprar porque pode. A primeira praticamente é forçada a vender
pela miséria da sua situação.
Na discussão das "barrigas de aluguel", parece que só os direitos das
mães adotivas têm verdadeira força ética -o direito a serem felizes; o
direito a terem filhos; o direito a comprá-los; e etc. etc.
Mas como responder aos direitos das "mães de aluguel"? Ou até dos
"filhos comprados"? Será que essas duas entidades têm direitos, no
sentido prosaico do termo?
Tempos atrás, quando em Portugal se debatia a "maternidade de
substituição" (um processo semelhante às "barrigas de aluguel", mas sem
dinheiro envolvido), lembro-me de formular algumas questões a respeito
que se aplicam com maior força às "mães de aluguel" a aos "filhos
comprados" de Anand.
Que direitos terá uma "mãe de aluguel" depois de entregar o filho
biológico ao casal adotivo? Poderá visitar a criança? Será obrigada a
afastar-se dela? Como? Por quê? Com que legitimidade?
E se, durante a gestação, a "mãe de aluguel" se recusar a entregar o
filho porque desenvolveu uma ligação emocional com ele? Haverá forma de a
coagir a cumprir o negócio? Em caso afirmativo, será isso tolerável?
Será, no mínimo, decente?
Melhor ainda: o que acontece, para citar alguns casos que ficaram
célebres nos Estados Unidos, quando o feto apresenta uma malformação
uterina e a mãe adotiva pretender abortá-lo contra a vontade da "mãe de
aluguel"? Pode? Não pode? Deve? Não deve?
Sem falar do próprio filho, aqui transformado em mero brinquedo sem
rosto ou dignidade própria. Quais são as consequências para uma criança
quando ela é separada precocemente da sua mãe biológica? Que impacto
isso terá no seu desenvolvimento psicológico ou social? Alguém sabe?
Alguém se interessa?
Aliás, como irá essa criança reagir quando, mais tarde, ela souber que
foi o produto de uma "encomenda"? Será que deve saber? Será que não
deve?
As perguntas não são apenas minhas. Elas encontram-se na vastíssima
literatura ética sobre o assunto -e cada uma dessas perguntas foi
motivada por um drama concreto, vivido por gente concreta, que entrou no
negócio por acreditar que um filho é precisamente isso: um negócio.
Não é. Exceto para cabeças ocas que transformam qualquer desejo em
"direito" -e qualquer "direito" em exploração dos mais pobres.
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* Jornalista. Colunista da Folha
Fonte: Folha on line, 05/02/2013
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