Paulo Ghiraldelli Jr. *
Uma pessoa inteligente e bem informada sabe que o socialismo ou, digamos, os regimes que se colocaram como comunistas, nunca
conseguiram resolver um problema crucial da “sociedade sem mercado”: a
circulação e distribuição dos bens de consumo e, por isso mesmo, o
atraso tecnológico. Além desse defeito, o socialismo nunca conseguiu
devolver as liberdades individuais tomadas de todos no período
revolucionário. Onde e quando fez essa devolução, as pessoas se
organizaram para voltar a viver sem o socialismo. Ora, se é assim, o que
faz uma pessoa inteligente e bem informada, tendo consciência disso
tudo, ainda poder dizer que é socialista, no sentido do que defendiam os
partidos comunistas, mesmo aqueles que se dispuseram a “romper com
Moscou”?
A resposta a essa pergunta é uma só: as
pessoas inteligentes e bem informadas não querem de modo algum o
comunismo, mas se ainda sobrou gente bem informado e inteligente que o
deseja, é muito provável que sejam leitores de livros de filosofia.
Trata-se daquela pessoa que acredita realmente que o objetivo que todo
homem tem na vida, que é o de ser feliz, só faz sentido se o homem puder
ver tudo sem qualquer tipo de véu. O homem feliz seria o homem não enganado, aquele que tivesse só um Deus, Nelson Rodrigues, e apenas um mandamento, ver “a vida como ela é”.
Esse homem seria aquele que saiu da
Caverna e nunca mais viu sombras, só realidade. Estaria livre de ser
ludibriado por qualquer traço de ideologia. Isso não por um dom especial
dele próprio, ou seja, por capacidade crítica ou por uma vocação à
autoiluminação, mas pelas condições sociais novas: uma sociedade sem
mercado seria uma sociedade incapaz de produzir ideologia, uma vez que a
ideologia, por definição do marxismo, são os resultados da reificação e
fetichismo (no mercado, a mercadoria assume o papel de sujeito e
submete o homem, que vira objeto – o morto toma o lugar do vivo),
próprios do mundo organizado nas regras da vida da mercadoria. O homem
autenticamente fora da Caverna seria aquele que andaria pela cidade sem
se defrontar com o que chamamos de rua de comércio ou shoppings. A
liberdade em relação a esse panorama material do capitalismo seria o
correlato material da liberdade diante dos fenômenos sociais, mas de
cunho metafísico, produtores de ideologia. Nada tomaria o lugar do homem
como sujeito. Nada morto se poria no lugar do vivo. As relações entre o
homem e a natureza e entre o homem e o homem se apresentariam em um
grau de realismo de tal ordem que os processos de conhecimento se dariam
de maneira muito facilitada. A “vida como ela é” se apresentaria a
qualquer um, mesmo ao mais tolo dos homens.
Conhecer o mundo “como ele é” é tão
importante para aquele comunista que se tornou comunista lendo filosofia
que ele admite trocar a vida facilitada por bens de consumo e por
liberdade individual pela vida que não se esconde como vida. Para esse
homem, conhecer é tudo. Conhecer sem barreiras, sem enganos, sem que
sombras na parede possam ser tomadas pelo real é, para esse homem, a
felicidade. Esse ideal intelectualista e cognitivista é o ideal de
felicidade do comunista leitor de filosofia. Por tal coisa, ele
sacrifica tudo aquilo que durante milênios se colocou como passo para a
felicidade. Diante desse ideal, ele fica revoltado com o pobre que
desiste do comunismo porque a sociedade de mercado lhe deu uma vida um
pouco melhor.
Pessoas assim são obcecadas pela
verdade. Não passa pela cabeça delas que o erro não seja a ilusão. Não
passa pela cabeça delas que a ilusão possa ser uma falsa ilusão. Elas
realmente estão convencidas do dogma metafísico marxista de que a
sociedade de mercado envolve todos nós na inversão que é o
fetichismo-reificação, a ideologia, porque desde sempre elas acreditaram
que não há como não estarmos em uma Caverna platônica, vendo sombras ao
invés do real.
É difícil para um leitor do manual Convite à filosofia,
da Marilena Chauí, se ele gosta do livro e acha que a filosofia é
aquilo mesmo definido pela professora, não se envolver com a diretriz
que diz que cabe à filosofia nos tirar da Caverna. Ele se torna parecido
com aquele professor de filosofia que toma sua disciplina como
coadjuvante da redenção social, que no limite deve antes de trazer bem
estar deixar as pessoas sem véus nos olhos. A Caverna moderna é a
sociedade de mercado e então a redenção social deverá nos tirar de tal
sociedade. Desse modo, o comunismo se tornaria ele próprio o realizador
do ideal da filosofia. Não estou dizendo que Marilena Chauí reduz seu
manual a isso, mas sua definição de filosofia implica nesse tipo de
crença. Uma pessoa assim, seguidora do manual da professora Chauí, não
dá a mínima para a social democracia, pois qualquer benefício social,
uma vez dentro do capitalismo, não nos tirará do capitalismo, nos
manterá ainda mais presos à “sociedade de mercado”. A filosofia é,
então, para tal pessoa, um apetrecho de coadjuvante da revolução. A
filosofia assim tomada clareia parte da vida, mas “a vida como ela é”,
sem ideologia, virá quando organizarmos a produção e a circulação de
mercadorias de outro modo, de um modo que nunca mais tenhamos shoppings
porque eles são o modo material de clímax do modo espiritual chamado
capitalismo.
Uma pessoa que toma a filosofia como
sendo o elemento de detecção da equação Caverna = Mercado + Burguesia, e
que deverá então, agir em favor da sociedade sem mercado, não pode nem
ouvir falar em social democracia. Esta, produzindo bem estar, não seria o
socialismo, mas o anti-socialismo. Pessoas assim terminam por se tornar
dogmáticas, pois não têm coragem de admitir que a “sociedade sem
mercado” fracassou. Seria como admitir que o Céu fracassou. Já
imaginaram esse cristão? Um cristão que, em uma manhã, recebe a notícia
de que Jesus não está à direita do Pai e não virá julgar os vivos e os
mortos. Essa pessoa envolvida com o Céu, está inebriada com a ideologia
do desaparecimento da ideologia. E ela seguirá achando que a felicidade é
conseguir viver no comunismo e que filosofia é o que a Marilena Chauí
diz que é. Esse tipo de pessoa poderá então aparecer no aeroporto de
chegada da blogueira cubana, para protestar. Pois o temor dela é que uma
tal garota lhe diga o que todos disseram e vem dizendo há tempo: o Céu
fracassou. Mesmo sendo inteligente e bem informada, essa pessoa, por
tudo isso que eu disse até aqui, pode mostrar traços de senilidade e
esclerose.
Por um azar você está no aeroporto de
chegada da blogueira cubana e vê alguns protestando. Você os reconhece,
eles são leitores de filosofia, de uma específica forma de divulgação da
filosofia. Você abaixa a cabeça e sai de fininho, com vergonha, pois
alguns deles podem reconhecer você como um amigo de juventude.
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* Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
PS: se a blogueira cubana for uma agente
da CIA eu ficarei feliz, pois saberei que a CIA começou a falar coisas
corretas sobre Cuba.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2013/02/a-blogueira-vinda-do-ceu/
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