EROS ROBERTO GRAU*
Tiradentes (MG), 1º de fevereiro de 2013
Amiga,Se for assim, a realidade em cada um desses inumeráveis universos, onde se encontram inumeráveis Terras, pode ou não ser repetitiva.
Pois decido, agora, que não. Não se repete e, certamente, querida, certamente terei entrado, na madrugada do domingo, 28, em um tunelamento quântico, errando de universo. Não é verdade que te machucaram.
Não quero ver as imagens que chegam pela televisão. Mudo de canal, penso nesse livro que ando a ler, tento convencer-me de que essa tragédia aconteceu em outro universo. Fecho os olhos, penso em ti.
Penso no pai, meu primeiro amigo. Em uma canção que toda a nossa gente conhece, o César Passarinho pede o que mais desejo: que digam, quando eu passe, que saí igualzito ao pai. Caminhávamos pela primeira quadra, que desemboca na praça Saldanha Marinho, onde, em noites não tão frias, as moças passeavam em um sentido, os rapazes pelo lado oposto, como que compondo um carrossel.
Ali, na primeira quadra, em 1943 – penso que era 1943 – recebi uma lição exemplar. O pai encontrara três amigos, o Edmundo Cardoso, o Círio Simões Pires e o Cherubim Abelim. Em um instante, o guri que eu era – ainda não completara três anos – tomou nas mãos um livro que estava com o Círio e jogou no chão. O pai ralhou comigo de modo inesquecível: “Tu não tens senso de responsabilidade!”. O episódio ficou marcado na história da família que fomos nós três, a mãe, o pai e eu. No teu chão aprendi a não ter manhas de filho único.
Deixei-te bem gurizinho. Mas voltávamos sempre, tu sabes, embora nunca mais de uma vez por ano. Sempre que ia ao teu encontro eu me sentia voltando, retornando ao começo.
Certo dia, no início dos anos 50, caminhávamos pela “primeira quadra”. Meu pai encontrava velhos amigos e, apontando-me, dizia: “este é o Eros Roberto, meu filho”. Sorríamos, e o guri que eu era sentia-se firme no mundo.
Deixei-te tão cedo, querida. Por isso mesmo, com vontade de voltar. Vontade de recuperar imagens, vozes, gestos. Coisas da década dos 40. Meu avô de bombachas me descascando laranjas, fazendo-lhes, nos ventres aloirados, pocinhos bem marcados. Anos depois, aventuras e venturas de adolescente e de já moço, tantas! Tenho muito a contar, de ti e de mim, em conversas de galpão comigo mesmo.
O tempo passa e, nesse ir-se indo, leva pessoas, sopra memórias. Guardo-as cuidadosamente, de modo que, se hoje passeasse pela primeira quadra, lá as encontraria. Seria tão bom, como se em meu tempo de menino, caminhar agora por ali, encontrar amigos do pai, olhar as moças na praça.
De quando em quando falo por telefone com os primos, prometo de repente aparecer, botaremos a prosa em dia lá na Sociedade Concórdia Caça e Pesca, na Venâncio Aires. Vamos logo nos ver – garantimo-nos uns aos outros.
Assim fluía o tempo, a areia escorrendo docemente na ampulheta, até que meu sonho de menino foi bruscamente interrompido. De repente, foi como se aquela fumaça me envolvesse, acordasse sufocado e descobrisse que – mais do que frágil, passageira, inconsistente – a vida que surpreende para o belo repentinamente apunhala. Um punhal cravado em nosso peito.
Por isso, querida, agora te escrevo. Tenho falado em ti nesses últimos dias, tenho dito coisas que repito nesta carta. Não podendo estar neste momento ao teu lado, escrevo-te. Mas é como se eu te tomasse em meus braços. Tu, que embalaste tanto o guri que continua em mim. Tomo tuas mãos, carinhosamente. As lágrimas em meus olhos já não são como as que os alcançam quando enlaço ternuras que despertas em mim. Agora é como se eu te abraçasse, trazendo-te bem para perto de mim, e nos uníssemos ainda mais sob essa enorme tristeza.
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* Santa-mariense, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, professor titular aposentado da Universidade de São Paulo, membro da Academia Paulista de Letras.
Imagem da Internet
Fonte: ZH on line, 05/02/2013
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