"Os clássicos da sociologia – E. Durkheim, K. Marx e M. Weber
– perceberam que a força histórica e social da religião reside em sua
capacidade de moldar – pela convicção, não pela coerção – o
comportamento humano e assim formar o “clima moral” de uma sociedade",
escreve Pedro A. Ribeiro de Oliveira, sociólogo, professor no Mestrado em Ciências da Religião da PUC-Minas e Consultor de ISER-Assessoria.
Segundo ele, "é na ação molecular, de base (as múltiplas atividades
pastorais de comunidades, movimentos e congregações religiosas) que
reside a força social da Igreja. Sem essa capilaridade pastoral, os
pronunciamentos do papa – e dos bispos, pode-se acrescentar – seriam
mera retórica. Se o papa e os bispos querem ter força moral, é hora de
renunciar aos poderes temporais. Ai reside um grande desafio ao
sucessor de Bento XVI".
Eis o artigo.
Eis o artigo.
A inesperada renúncia do Papa Bento XVI abre o
processo que elegerá seu sucessor no pontificado. Durante séculos
constou da cerimônia de inauguração do pontificado a tiara: ornamento de
cabeça com três coroas superpostas. De origem medieval, a tiara
simboliza a conjunção de três poderes. Ao ser coroado, o Papa recebia a
tiara como símbolo de tornar-se então “Pai de Príncipes e Reis, Pastor
de toda a Terra e Vigário de Jesus Cristo”. O último papa a colocá-la na
cabeça foi Paulo VI, que em 1963 a depositou aos pés
do altar para não mais ser usada. Desapareceu assim o antigo símbolo do
poder temporal dos papas.
Acabou-se o símbolo, com certeza, mas não os poderes temporais.
Embora o papa não consagre chefes de Estado, não comande exércitos nem
dirija alguma corporação transnacional, ele continua a exercer poderes
que não são insignificantes. Sem alarde e sempre alegando servir a
Igreja, os últimos papas conservaram os principais poderes que a
tradição medieval lhe atribuiu.
Em primeiro lugar, o papa dispõe de uma importante instituição financeira: o Instituto para as Obras de Religião,
que funciona como banco a serviço da Santa Sé. Por gozar do privilégio
de extraterritorialidade, essa instituição pode fazer aplicações de
capital em diferentes campos da economia sem submeter-se ao controle
externo de suas atividades. Isso dá ao papa considerável poder
econômico, pois ainda que viessem a faltar as contribuições voluntárias
dos fiéis, os rendimentos dessas aplicações financeiras permitiriam
manter a Santa Sé em funcionamento por muito tempo.
Outro poder oriundo da tradição medieval é a condição de chefe de
Estado. O Vaticano é um território minúsculo, comparado aos antigos
Estados Pontifícios, mas dá ao papa o comando sobre o corpo diplomático
da Santa Sé, que é tido como um dos mais competentes e eficientes do
mundo. Formados pela Pontifícia Academia Eclesiástica,
os núncios apostólicos e seus auxiliares representam a Santa Sé em quase
todos os Países do mundo e junto aos principais organismos
internacionais. Sua função não é apenas diplomática mas também
eclesiástica, pois as nunciaturas são o veículo normal das informações
confidenciais entre a Secretaria de Estado e os bispos de um país, e por
elas passam as denúncias de irregularidades nas igrejas locais.
Independentemente da quantidade de católicos residentes no país, a
representação diplomática da Santa Sé tem status de embaixada e em
muitos países o núncio exerce a função de decano do corpo diplomático.
Outro poder de grande importância é a nomeação de bispos. Também
herança medieval, quando havia grande interferência de reis e príncipes
na escolha de bispos para dioceses situadas em áreas sob sua jurisdição.
Para proteger aquelas dioceses contra nomeações que atendessem antes
aos interesses dos governantes do que às necessidades pastorais da
igreja local, o papa reservou-se o direito de eleição dos bispos. Hoje
em dia a laicidade do Estado impede a interferência do poder político na
escolha de bispos, e a situação inverteu-se: em vez de salvaguardar o
direito de a igreja local escolher seu bispo, a escolha do candidato
pelo papa volta-se contra ele. As nomeações episcopais são regidas pela
lógica da cúria romana e não pelas necessidades da igreja local. Isso
não significa, é claro, que a cúria romana desconheça as igrejas locais,
mas seu conhecimento depende da eficiência dos canais de informação
disponíveis. Além disso, como todo ocupante de cargo de direção presta
contas primeiramente a quem o elegeu, os bispos se sentem obrigados a
seguir a orientação vinda de Roma mesmo quando ela não condiz com a
realidade de sua igreja particular. E isso, sem dúvida, só faz aumentar a
centralização do poder romano.
Apontados esses três poderes papais, como três coroas de uma tiara,
cabe refletir sobre o significado da renúncia dos últimos quatro papas
ao uso da tiara. Renunciaram apenas a um ornamento bizarro ou a certos
poderes que hoje mais impedem do que favorecem a missão evangelizadora
da Igreja?
Os três poderes acima enunciados – poder econômico, poder de Estado e
poder eclesiástico – favorecem uma forma de organização centralizada e
piramidal, na qual a cúpula tem o controle de todas as instâncias
intermediárias até as bases. Esse modelo organizativo que moldou também a
burocracia estatal, o exército, e as empresas privadas desde o século
XIX vem sendo substituído por outro modelo, mais flexível e ágil: a
organização em rede, que tornou caduca a organização piramidal, hoje
incapaz de assegurar uma governança eficiente.
Não é, porém, por ter saído de moda que o modelo centralizado e
piramidal adotado pela Igreja católica romana deve ser criticado, pois
há coisas fora de moda que continuam boas – como o casamento monogâmico,
por exemplo. O poder centralizado e piramidal merece ser criticado é
porque dificulta o exercício da autoridade: a capacidade de mobilizar
pessoas apenas pela força moral de quem as lidera. Aí, sim, reside o
fulcro da questão.
Os clássicos da sociologia – E. Durkheim, K. Marx e M. Weber
– perceberam que a força histórica e social da religião reside em sua
capacidade de moldar – pela convicção, não pela coerção – o
comportamento humano e assim formar o “clima moral” de uma sociedade. É
na ação molecular, de base (as múltiplas atividades pastorais de
comunidades, movimentos e congregações religiosas) que reside a força
social da Igreja. Sem essa capilaridade pastoral, os pronunciamentos do
papa – e dos bispos, pode-se acrescentar – seriam mera retórica. Se o
papa e os bispos querem ter força moral, é hora de renunciar aos poderes
temporais. Ai reside um grande desafio ao sucessor de Bento XVI.
Uma Igreja que anuncia e constroi o Reinado de Deus no mundo atual – afinal esta é sua perene missão, reafirmada no Concílio Ecumênico de 1962-65
– deve renunciar ao poder econômico, à diplomacia e à organização
piramidal, para tornar-se uma Igreja capaz de dialogar com o mundo como
fazia Jesus: com autoridade moral e testemunho de amor –
preferencialmente aos pobres e às pessoas socialmente desprotegidas. Que
o próximo papa deixe a tiara no museu do Vaticano e com ela os poderes
temporais herdados dos tempos medievais. Será bom para o Papa, para a
Igreja católica e para o mundo todo.
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Fonte: IHU on line, 12/02/2013
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