ARNALDO JABOR*
Como
pode o mundo achar
o carnaval uma loucura,
este mundo irracional de
homens-bomba e drones?
Todo ano minha coluna sai na terça-feira de carnaval.
Não há outro assunto que possa suplantar a espantosa festa popular e
acabo me repetindo. Eu andava irritado com a folia anual. Cheguei a
dizer que o chamado "tríduo momesco" - como falavam os cronistas
d'antanho - tinha virado uma calamidade pública. Mas, nos últimos dias,
vendo as massas pulando nas ruas de Salvador, Recife e Rio, fiquei
pensando: como é que pode? O que faz milhares de foliões se jogarem nas
ruas como estouros de boiadas, o que será que provoca tanta fome de
samba, de riso, de porres, de sexo em flor? Este ano, há blocos que
congregam mais de 400 mil participantes, 400 mil dançando na orla do
Rio, em um delirante comício de felicidade.
Olhei de perto um infinito rio de gente pulando na beira-mar, até sem
ouvir mais a música que guiava os foliões, como uma locomotiva sonora.
Houve uma mudança, sem dúvida.
Lembro-me do tempo recente em que todos reclamavam do "fim do
carnaval", reduzido às alegorias luxuosas das escolas sob um elegante
desprezo das elites. Lembro das primeiras damas da ditadura rebolando no
camarote, d. Yolanda Costa e Silva ou d. Dulce Figueiredo, enquanto o
carnaval de rua no Rio minguava, com mascarados solitários e escassos
bloquinhos na avenida, restando apenas os "Clovis" de Santa Cruz com a
tradição do passado. O carnaval oficial tinha virado um produto de
mercado, um merchandising de bicheiros, uma festa para voyeurs, para
turistas, inclusive para brasileiros - turistas de si mesmos.
Mesmo depois da ditadura, seria impossível ver esses imensos rios que
passam em nossas vidas. Era impossível a alegria popular com 2 mil por
cento de inflação ao ano, no fim da década de 80. Creio mesmo que essa
enchente de povo se forma a partir da estabilização da economia em 94 e
da maré em nossa direção, com o capital internacional dirigido aos
países emergentes. Aos poucos, o País retomou sua autoestima e,
especialmente no Rio, ela cresce nos últimos tempos, com o melhor
controle da criminalidade e com o fim dos governos sórdidos que jogaram a
cidade no buraco.
Subitamente, como as multidões árabes que tomaram as praças da África
do Norte, nossas massas encheram a cidade. Sente-se o renascimento de
um desejo gregário, até de contato físico entre as pessoas, uma explosão
de liberdade e um irresistível desejo de existir em comunidade, de
viver e morrer numa fervente multidão, onde todos virem um grande "um".
Creio também que isso reflete o movimento atual da vida social que se
organiza cada vez mais em redes, pois os métodos de comunicação pela
internet não apontam mais para um futuro, para um ponto de chegada. Não.
Agora a vida social tem uma dinâmica interna, intramuros, congregadora.
Não mais utopias nem mesmo distopias, que são 'finalismos' ao avesso.
Não. Agora o movimento é no presente, é centrípeto, cerrando contatos e
intimidades.
"Na razão do carnaval existe
algo mais além da imoralidade; há uma santidade
nesta explosão de carne
que não se explica.
Onde existem estas montanhas de corpos se atirando
uns aos outros, com sexo e música?
A sacanagem das matas profundas
é
diferente das surubas calvinistas de Nova York,
que inventaram o sexo
torturado
nas boates doentias e
acabaram na aids."
Não me esqueço do desfile premonitório que o genial Joãozinho Trinta
fez com urubus, ratos e mendigos em 1988, anunciando que o luxo que ele
tinha criado com sua frase luminosa ("o povo quer é luxo; quem gosta de
miséria é intelectual...") poderia virar um lixo crítico, uma denúncia
ao êxtase fácil e alienante. Ali estava um prenúncio do carnaval que
agora se derrama, fluvial, pelo País.
Somos um povo esquisito, todo nu, pulando como malucos para espanto risonho do mundo "civilizado".
Muito bem. Pois, acho o carnaval nossa marca e nossa grandeza. Como
pode o mundo achar o carnaval uma loucura, este mundo irracional de
homens-bomba e drones? É melhor entender o Brasil através do carnaval,
do que ver o carnaval como um desvio da razão. O carnaval nos vê. Sua
razão sacana nos ensina mais que estas 'moralidades críticas'.
Assim como o Círio de Nazaré congrega milhares pela esperança e fé,
como um martírio triunfal, assim como o futebol congrega torcidas pela
vitória de uma camisa, o carnaval de hoje me parece a consequência da
democracia e do crescimento econômico do País. Enquanto as elites
deprimem em casa, vão a um camarote de cervejaria ou fogem para a serra,
milhares de bailarinos tomam a cidade como numa revolução.
O carnaval mostra que o Brasil tem outra forma de 'seriedade', mais
alta que a gravidade do mundo anglo-saxão. O carnaval mostra a matéria
de que somos feitos, por baixo dessa mímica de "ocidente" que o Brasil
tenta há quatro séculos. Mas, para descobrir um carnaval ainda mais
puro, temos de ir aos blocos de "sujos", esses sim, com uma alegria
selvagem e sem frescuras. Podemos ver nas ruas a preciosa origem do
carnaval profundo. Lá, estão os desesperados, os famintos de amor, os
malucos, os excluídos da festa oficial; é o carnaval dos miseráveis, a
dança do escracho na melhor tradição da arte grotesca, dessacralizando
as obrigações da virtude e da obediência. Na razão do carnaval existe
algo mais além da imoralidade; há uma santidade nesta explosão de carne
que não se explica. Onde existem estas montanhas de corpos se atirando
uns aos outros, com sexo e música? A sacanagem das matas profundas é
diferente das surubas calvinistas de Nova York, que inventaram o sexo
torturado nas boates doentias e acabaram na aids. A "razão perversa" é a
razão do carnaval. Não a perversão como 'pecado', mas como mímica de
uma liberdade, como a busca de uma civilização 'não civilizada', de um
retorno a uma animalidade perdida e, no entanto, pulsante.
A África e os índios nos salvaram, assim como salvaram os USA. Que
seria da América sem o jazz? Um país branco azedo, cheio de wasps
tristes.
Nosso carnaval mostra que o Inconsciente brasileiro está à flor da
carne. Quanto mais civilizado o país, mais fundo o recalque. Já
imaginaram um carnaval na Suíça? Talvez o carnaval seja uma doença
salvadora, uma epidemia de "desbunde" de que o mundo precisa, por só
conhecer a guerra, a velocidade e o mercado cruel.
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* Cineasta. Escritor.
Fonte: Estadão on line, 12/02/2013
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