Vito Mancuso*
Se já é difícil entender como um ser
humano pode vir a ser
infalível,
talvez ainda mais difícil é compreender
como ele pode, de
repente,
deixar de sê-lo
Nessa quarta-feira, o porta-voz da Sala de Imprensa vaticana, o padre jesuíta Lombardi, declarou que, a partir da noite do dia 28 de fevereiro próximo, Joseph Ratzinger não será mais infalível. Ora, se já é difícil entender como um ser humano pode vir a ser infalível, talvez ainda mais difícil é compreender como ele pode, de repente, deixar de sê-lo. Porém, foi o próprio padre Lombardi que esclareceu bem a questão.
E sublinhou que a infalibilidade "está conectada ao ministério petrino, não à pessoa que renunciou ao pontificado". Isto é, o atual pontífice é infalível como Papa Bento XVI, porque, como papa, goza da graça particular ligada ao seu estado de Pontífice Romano, que a teologia chama precisamente de "graça de estado".
Não é nada infalível, ao invés, como indivíduo de nome Joseph Ratzinger, que, como homem como nós, pode se equivocar nas coisas comuns da vida, por exemplo, nos julgamentos sobre as pessoas (e eu não penso que possa haver dúvidas sobre o fato de que sobre alguns dos colaboradores ele não tenha sempre visto certo), nos julgamentos políticos e até naqueles bíblicos e teológicos.
Ratzinger estava totalmente consciente de tudo isso, visto que escreveu no seu primeiro livro sobre Jesus que "cada um é livre para me contradizer", e o que leva um papa a dizer que cada um é livre para contradizê-lo (até quando escreve sobre Jesus!) senão precisamente a consciência da sua humana possibilidade de se equivocar?
Mas se as coisas são assim, em que consiste precisamente a infalibilidade papal e de onde vem?
A infalibilidade que cabe ao romano pontífice é o penúltimo dos dogmas declarados pela Igreja Católica. Foi proclamado pelo Concílio Vaticano I com a constituição dogmática Pastor aeternus, de 18 de julho de 1870, em uma Europa que, no dia seguinte, veria a eclosão da Guerra Franco-Prussiana entre o Segundo Império Francês e o Reino da Prússia, e em uma Roma que quase já pressentia a chegada das tropas piemontesas prontas para atacar a capital do Estado pontifício.
O papa reinante era Pio IX, que seis anos antes havia publicado uma verdadeira declaração de guerra ao mundo moderno, o famoso Sílabo, ou seja, coleção de erros proscritos. Quem estava sob ataque, portanto, antes mesmo da capital do Estado pontifício, era a mente católica, que assistia ao irrefreável processo que a estava privando daquele primado moral e espiritual que ela detinha há séculos.
Assim se explica o desejo de centralização em torno da figura do papa e do seu primado do qual brotou o dogma da infalibilidade pontifícia. Ele declara que o romano pontífice, quando fala ex cathedra, isto é, quando define uma doutrina em matéria de fé e de moral, goza de infalibilidade. E que, para a fé católica, não se trata de um simples opcional; o Vaticano I a pensou deixando claro: "Se, porém, alguém, Deus não queira!, ousar contrariar essa nossa definição: seja anátema". Anátema, para quem não o sabe, é sinônimo de excomunhão.
De 1870 até hoje, o dogma da infalibilidade foi usado somente uma vez, especificamente por Pio XII, em 1950, quando proclamou o dogma da Assunção aos céus da Santa Virgem Maria em corpo e alma. Mas, apesar do uso parcimonioso, a questão da infalibilidade tornou-se ardente assim mesmo por causa do célebre teólogo suíço Hans Küng, que, precisamente por ter criticado a infalibilidade pontifícia com um livro que fez época, intitulado Infalível? Uma pergunta (1970), foi privado por João Paulo II da qualificação de teólogo católico.
É crível hoje um dogma como o da infalibilidade papal? A meu ver, ao invés, ele acaba afastando do sentimento religioso. Eu penso, de fato, que, para a consciência, é a própria noção de infalibilidade que se torna impossível hoje, quando as próprias ciências exatas se declaram conscientes de apresentar dados cada vez mais sujeitos a possíveis revisões e, como tais, declaráveis apenas "não falsificados" e nunca absolutamente verdadeiros.
Vivemos em uma época em que a própria noção teórica de verdade é pouco crível, ainda mais quando se trata de verdade absoluta, dogmática, indiscutível. Ratzinger sabe bem disso e não por acaso, há muito tempo, acusa esta época de "relativismo", mas não é culpa de ninguém se as coisas são assim, é o espírito dos tempos que se move e se manifesta nas mentes depois de um século como foi o XX, e é preciso reconhecer isso se quisermos continuar falando ao mundo de hoje.
Também à luz do fato de que um papa, Honório I, foi declarado herege pelo Concílio Ecumênico Constantinopolitano III, Küng propunha que se substituísse a infalibilidade pelo conceito de indefectibilidade, querendo dizer com isso que a questão subjacente à infalibilidade não se refere à razão teórica, mas sim à vontade, "ao coração", como diria Pascal, ou seja, que a Igreja nunca abrirá mão da tarefa belíssima de ser fiel ao seu Senhor e ao primado do bem e do amor que dele se segue.
Parece-me uma proposta mais atual, mais humilde, mais evangélica.
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* A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Università Vita-Salute San Raffaele, de Milão. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 14-02-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU on line, 16/02/2013
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