sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Uma nova aliança entre ciência e religião? O resgate da categoria ‘espírito’

Leonardo Boff*
 
 
 
 
Cada época cultural estabelece seu diálogo com a natureza. Ora enfatiza seu caráter imponderável e por isso mágico; ora capta sua profunda simetria e daí a natureza como cosmos; e outras vezes ainda seu aspecto criativo, irredutível à lógica linear. Segundo Alexandre Koyré e Ilya Prigogine é o diálogo experimental que constitui a prática específica da ciência moderna. Hoje para além dela, parece ser a prática holística aquela que caracteriza a abordagem contemporânea da natureza. Todas as pronúncias do mundo são complementares e ajudam na decifração daquilo que é mais do que o enigma da natureza, vale dizer, o seu verdadeiro mistério.

Para a visão contemporânea, o universo constitui mais e mais uma realidade incognoscível. Ela é continuamente desafiada a conhecer num processo que não tem fim. Por esta razão é importante tomar a sério as várias janelas que os distintos saberes abrem para a compreensão da natureza. Daí surge seu caráter holístico (totalizante e sintético).

De todas as formas, a leitura do mundo pertence ao complexo cultural do tempo e se inscreve no concerto das demais práticas. Da dialogação do ser humano com a natureza surgem as várias cosmologias. Cada cosmologia se orienta por uma imagem do mundo resultante dos mais distintos saberes. 

Curiosamente, cada cosmologia suscita a questão de Deus. E com razão, pois como dizia o grande físico David Bohm, (prêmio Nobel):"as pessoas intuem uma forma de inteligência que organizou, no passado, o universo e a personalizaram chamando-a "Deus".

A cosmologia antiga via o mundo na metáfora da pirâmide. Deus se encaixava aí perfeitamente, como o cume de todos os seres. Na cosmologia moderna de A. Newton e de G. Galilei o mundo era visto como uma máquina que funciona com suas leis determinísticas. Deus entra como o arquiteto do universo que no início colocou a máquina em funcionamento. E não precisa mais acompanhá-la. A cosmologia contemporânea considera o mundo como um jogo ou uma dança ou uma teia ou uma rede. Já há décadas, se reconhece que o universo constitui um imenso jogo de forças em interação, uma dança cósmica de partículas sempre interdependentes, formando campos de matéria e de energia cada vez mais ordenados, até que nos seres vivos ganha autorregulação que escapa à segunda lei da termodinâmica: a entropia. A seta do tempo, ao invés de nos conduzir para a desordem máxima e a morte térmica, nos introduz a patamares sempre mais altos de sentido e de criatividade. É a visão de Ilya Prigogine (prêmio Nobel) com suas estruturas dissipativas.

O que mais fascina os cientistas é a constatação da harmonia e da beleza do universo. Tudo parece ter sido montado para que, da profundidade abissal de um oceano de energia primordial (o vácuo quântico), devessem surgir o campo de Higgs, os bósons, as partículas elementares, depois a matéria ordenada, em seguida a matéria complexa que é a vida e por fim a matéria em sintonia completa de vibrações, formando uma suprema unidade holística: a consciência (condensado Bose-Einstein de tipo Fröhlich/Prigogine).

Como dizem os formuladores do princípio andrópico (forte e fraco, Brandon Carter, Hubert Reeves e outros): se as coisas não tivessem ocorrido como ocorreram, não estaríamos aqui para falar delas. Quer dizer, para que pudéssemos estar aqui, foi necessário que todos os fatores cósmicos, em todos os 13,7 bilhões de anos, tivessem se articulado e convergido de tal forma que fosse possível (mas não necessário) a complexidade, a vida e a consciência. Caso contrário nada existirá daquilo que hoje existe.

Há uma minuciosa calibragem de medidas sem as quais as estrelas jamais teriam surgido ou eclodido a vida no universo. Por exemplo, caso a interação nuclear forte (aquela que mantém a coesão dos núcleos atômicos) tivesse sido 1% mais forte, jamais se formaria o hidrogênio que combinado com o oxigênio nos daria a água, imprescindível aos seres vivos.

Em cada coisa encontramos o todo, o caos sendo criativo, as forças interagindo, as partículas se articulando, a estabilização da matéria acontecendo, a abertura para novas relações se dando e a vida criando ordens cada vez mais sofisticadas e autoconsciente. 

A verificação desta ordem do universo faz surgir nos cientistas, como em Einstein, Heisenberg, Bohm, Prigogine, Swimme e outros o sentimento de assombro e de veneração. Ela nos abre para os espaços infinitos da indagação humana: o que existia antes da existência temporal do universo? Por que existe o ser e não o nada? que é Aquela realidade que se apresenta como o ordenador e o sustentador de todos os fenômenos?

Ela tem um nome, da nossa reverência e de nossa unção. Um filósofo como J. Guitton podia dizer: "não ouso nomeá-la, pois qualquer nome é imperfeito para designar o Ser sem semelhança”. Um teólogo ousa mais: chama-o de Deus: a Energia de todas as energias.
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*Leonardo Boff e Mark Hathaway escreveram de O Tao da Libertação (diálogo entre ciência moderna e teologia: Vozes 2012)].]
 Fonte: http://www.adital.com.br/site/15/02/2013
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O resgate da categoria "espírito”

Por Leonardo Boff, teólogo e filósofo

Na cultura atual a palavra "espírito” é desmoralizada em duas frentes: na cultura letrada e na cultura popular.

Na cultura letrada dominante, "espírito” é o que se opõe à matéria. Matéria sabemos mais ou menos o que é, pois pode ser medida, pesada, manipulada e transformada, enquanto "espírito” cai no campo do intangível, indefinido, e até nebuloso. A matéria é a palavra-fonte de valores axiais da experiência humana dos últimos séculos. A ciência moderna se construiu sobre a investigação e a dominação da matéria. Penetrou até as suas últimas dimensões, às partículas elementares, até o campo Higgs no qual se teria dado a primeira condensação da energia originária em matéria: os tão buscados bósons e hádrions e a chamada "partícula de Deus”. Einstein comprovou que matéria e energia são equipolentes. Matéria não existe. É energia altamente condensada e um campo riquíssimo de interações. 

Os valores espirituais, na acepção moderna convencional, situam-se na superestrutura e não cabem nos esquemas científicos. Seu lugar é o mundo da subjetividade, entregues ao arbítrio de cada um ou a grupos religiosos. Exprimindo-o de uma maneira um tanto grotesca, mas nem tanto, podemos dizer com José Comblin, grande especialista no tema:"quando se fala em ‘valores espirituais’, todo mundo imagina que está falando um burguês numa reunião do Rotary ou dos Lions Club depois de uma abundante ceia regada a bons vinhos e servida com comidas finas; para o povo em geral ‘valores espirituais’ equivale a ‘palavras belas mas ocas”. Ou então pertence ao repertório do discurso eclesiástico moralizante, espiritualizante e em relação hostil com o mundo moderno.

Em razão disso, a expressão "valores espirituais” surge com mais frequência na boca de padres e de bispos de viés conservador. Deles se ouve amiúde que a crise do mundo contemporâneo reside fundamentalmente no abandono do mundo espiritual: a não frequência da missa ou de qualquer referência explícita à Igreja hierárquica.

Mas com os escândalos havidos nos últimos tempos com os padres pedófilos e com os escândalos financeiros ligados ao Banco do Vaticano, o discurso oficial dos "valores espirituais” se desmoralizou. Não perdeu valor, mas a instância oficial que os anuncia conta com muito pouca audiência.

Na cultura popular, a palavra "espírito” possui grande vigência. Ela traduz certa concepção mágica do mundo à revelia da racionalidade aprendida na escola. Para grande parte do povo, especialmente os influenciados pela cultura afrobrasileira e indígena, o mundo é habitado por bons e maus espíritos que afetam as distintas situações da vida como a saúde e as doenças, a vida afetiva. os sucessos e os fracassos, a boa ou a má sorte. O espiritismo, codificou esta visão de mundo pela vida da reencarnação. Possui mais adeptos do que se suspeita.

No entanto, os últimos decênios nos demos conta de que o excesso de racionalidade em todas as esferas e o consumismo exacerbado geraram saturação existencial e também muita decepção. A felicidade não se encontra na materialidade das coisas; mas, em dimensões ligadas ao coração, ao afeto, às relações de amor, de solidariedade e de compaixão. 

Por toda as partes, buscam-se experiências espirituais novas, quer dizer, sentidos de vida que vão além dos interesses imediatos e da luta cotidiana pela vida. Eles abrem uma perspectiva de iluminação e de esperança no meio do mercado de idéias e de propostas convencionais, veiculadas pelos meios de comunicação e também pelas assim chamadas "instituições do sentido” que são as religiões, as igrejas e as filosofias de vida. Elas ganharam força através dos programas de TV e dos grande shows religiosos que obedecem à lógica da espetacularização massiva e que, por isso mesmo, se afastam do caráter reverente e sagrado de toda religiosidade. Numa sociedade de mercado, a religião e a espiritualidade se transformaram também em mercadorias à disposição do consumo geral. E rendem muito dinheiro.

Não obstante a referida mercantilização do religioso, o mundo espiritual começou a ganhar fascínio embora, na maioria das vezes, na forma de esoterismo e de literatura de autoajuda. Mesmo assim ele abriu uma brecha na profanidade do mundo e no caráter cinzento da sociedade de massa. Nos meios cristãos emergiram as Igrejas pentecostais, os movimentos carismáticos e a centralidade da figura do Espírito Santo. 

Estes fenômenos supõem um resgate da categoria "espírito” num sentido positivo e até antissistêmico. O "espírito” constitui uma referência consistente e não mais colocada sob suspeita pela crítica da modernidade que somente aceitava o que passava pelo crivo da razão. Ocorre que a razão não é tudo nem explica tudo. Há o irracional e aracional. No ser humano há o universo da paixão, do afeto e do sentimento que se expressa pela inteligência cordial e emocional. O espírito não se recusa à razão, antes, precisa dela. Mas vai além, englobando-a num patamar mais alto que tem a ver com a inteligência, a contemplação e o sentido superior da vida e da história. Em termos da nova cosmologia ele seria tão ancentral quanto o universo, este também portador de espírito. A era do espírito?

[A sair pela Vozes, do autor: Fogo do céu: o Espírito Santo no universo, na humanidade, nas Igrejas e religiões 2013].

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