sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Molhando as raízes

 Leonardo Boff*

Na vida experimentamos um paradoxo curioso: quanto mais avançamos em idade, mais regredimos para os tempos da infância. Parece que a vida nos convida a unir as duas pontas e começar a fazer uma síntese final. Ou quem sabe, o ocaso da vida com a perda inevitável da vitalidade, com os ritmos mais calmos e os limites incontornáveis desta última fase   inconscientemente nos levam a buscar fortalecimento lá onde tudo começou. A cansada existência vem molhar as raízes naqueles começos de antanho para ainda tentar se rejuvenescer e chegar bem à travessia final.

Pois foi o que me ocorreu nesta primeira semana de fevereiro. Voltei à terra, às velhas terras (“terre vecchie”como dizemos entre os familiares): Concórdia, no interior de Santa Catarina. A cidade e as vizinhas são conhecidas em todo Brasil por seu produtos: quem não comprou frangos Sadia de Concórdia,  presunto da  Perdigão de Herval do Oeste, defumados da Aurora de Chapecó e salames de Seara? Pois todos estes frigoríficos distam poucos quilômetros uns dos outros. É uma região rica, de colonos italianos, alemães e poloneses, lugares onde o Brasil parece ter dado certo. Tudo é praticamente integrado, as casas são elegantes e coloridas, o bem-estar generalizado e não se conhecem favelas como as tantas que cercam a maioria das cidades do pais.

Primeiramente visitamos os sobreviventes da família. Do lado de minha mãe, apenas uma tia carregada de anos e de dores, do lado do meu pai ninguém mais. Só restam primos e primas. A maioria foi para as cidades, um trabalha em Montreal, como criador de jogos da internet, outro é diplomata, os demais em profissões liberais. Alguns ficaram  na terra.

Em seguida, os lugares queridos da infância.Eles marcaram nossa psiqué porque os levamos entro: cada morro, cada curva do caminho, cada  subida ou descida e os vastos horizontes por todos os lados, vislumbrando-se montanhas do Rio Grande do Sul e os elevados do Campos Gerais de Santa Catarina. O olhar infantil exagera nas proporções. O que considerávamos uma subida penosa e íngreme, não passa de singela descida ou subida. Os montes imensos são apenas coxilhas. Mas ficaram iguais as profundas canhadas, as pedras por todo canto que tornavam penosa a lavoura dos colonos: o cultivo do trigo e do milho. Os parreirais tão abundantes, um para cada casa, praticamente, despareceram, pois o vinho de qualidade se tornou acessível.     

Aqui nos sentimos parte daquela paisagem, aqui estão nossas raízes, o lugar a partir de onde começamos a alimentar  sonhos, a contemplar as estrelas nas frias noites de inverno e a nos situar no mundo. Curiosamente quando tenho que falar em lugares tidos importantes como na Assembleia Geral da ONU ou em Harvard, remeto-me ao tempo da pedra lascada de onde vim; lembro  o piá de pés descalços e cheios de bichos do pé que fui, alimentado com muita polenta e leitura temporã de livros. Por mais esplêndidas paisagens que tenha tido ocasião de contemplar, nenhuma é  interiormente mais bela do que aquela de minha infância. Porque ela é única no mudo. Tudo o que é único no universo nunca mais volta a ocorrer e por isso é intrinsecamente belo.

Mas o que me marca cada vez que visito os parentes são as festas que improvisam: come-se muito, a comida regional, a polenta, os “radicci” os vários tipos de “biscotti” e “cucas alemães”,  a “fortaia” as massas. os queijos e salames caseiros e naturalmente o churrasco. A maioria que ficou na terra teve pouca escolarização: falam um mistura deliciosa de dialeto vêneto e de português. A cantilena é a mesma, com forte sotaque italiano, do qual eu mesmo nunca me libertei. As mãos rudes do trabalho e os rostos vincados da luta pela vida causam forte impressão. E vigora entre todos uma benquerença e cordialidade de fazer chorar. Os abraços são de vergar as costelas e os beijos das primas mais idosas, da nossa idade, são longos e estalados. De algumas sinto o cheiro de minha própria mãe, o mesmo olhar, a mesma forma de colocar a mão à cintura.Quem resistirá a emoção? Lágrimas  benfazejas escorrem dos olhos.

Os tempos voltam ao início misterioso da caminhada da vida.  Mas temos que prosseguir. Eles vão junto no coração, agora leve e rejuvenescido porque molhou as raízes na essência da vida que é o sangue, o laço, o afeto e o amor.
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*Leonardo Boff é teólogo, filosofo e escritor.
Fonte: http://leonardoboff.wordpress.com/2013/02/08/molhando-as-raizes/
Imagem da Internet

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