Oitenta anos após a chegada de Adolf Hitler ao poder,
"Er ist wieder da" — "Ele está de volta" — do escritor alemão Timur
Vermes, encena o regresso do ditador a Berlim, no verão de 2011. O livro
permanece no topo das vendas, mas também provoca grande ranger de
dentes.
30 de agosto de 2011. Um velho acorda num terreno baldio de
Berlim. Deitado no chão, só vê o céu azul por cima da cabeça e fica
surpreendido ao ouvir o canto dos pássaros, sinal de que estamos a
testemunhar pelo menos uma pausa nos combates.
O homem tem uma grande dor de cabeça e não sabe onde se encontra nem
como ali chegou. Tenta lembrar-se do que fez na véspera: a amnésia não
pode ser explicada pelo álcool – porque o Führer não bebe! Em
vão, procura em redor o seu fiel Bormann. Hitler levanta-se com
dificuldade e dirige-se para as vozes de três rapazes da Juventude
Hitleriana, certamente de licença porque não estão fardados e jogam à
bola. "Ei, velhote, olha p’ra isto! Quem é este velho?" "Devo estar mesmo com mau aspeto", pensa o Führer, ao registar a falta da saudação regulamentar. "Onde está o Bormann?", preocupa-se novamente. "Quem é esse?" "Bormann! Martin Bormann!" "Não conheço, tem cara de quê?" "De dirigente de topo do Reich!" Hitler olha novamente para os três rapazes. Estão de camisolas coloridas. "Jovem hitleriano Ronaldo! Onde fica a rua mais próxima?" Ninguém reage. Então, vira-se para o mais novo dos três, que aponta para um canto do terreno.
No quiosque de jornais da terra, Hitler procura o seu velho diário Völkischer Beobachter. Só vê títulos turcos... "Estranho, os turcos permaneceram fora do conflito, apesar das nossas inúmeras tentativas de o associar à nossa causa."
Desmaia ao ler a data, 30 de agosto de 2011, num dos jornais que não
conhece. O dono do quiosque julga estar na presença de um ator saído de
uma série de televisão. Deixa Hitler ficar uns dias com ele no
estabelecimento. "Olhe que o senhor imita-o bem, hã?" Hitler fica indignado. "Pareço algum criminoso?" "Parece o Hitler", diz o vendedor de jornais. "Precisamente!", responde o Führer...
Transformado em vendedor de jornais, o ditador é "descoberto" por uma
empresa de conteúdos para televisão. Os produtores veem nele um "enorme potencial".
Ele fica danado... O êxito do programa é impressionante. Desamparado,
Hitler acordou numa sociedade onde o sucesso é medido em termos de
audiências, em "gostos" no Facebook e coisas do género. Torna-se um ator
cómico reconhecido... "O senhor vale ouro, meu caro! Isto é apenas o início, acredite em mim!", felicita-o o produtor.
A famosa madeixa de cabelo preto
"Este livro é tão engraçado que não se consegue largar",
entusiasma-se Peter Hetzel, crítico literário do canal televisivo Sat 1.
Na verdade, o romance – de capa branca adornada apenas com a famosa
madeixa de cabelo preto e com o título a ocupar o lugar do bigode –
obteve um sucesso inesperado, apesar do preço (19,33 euros, em
referência ao ano da chegada de Hitler ao poder) e da extensão (396
páginas escritas na primeira pessoa do singular, maioritariamente de
reflexões pessoais do Führer, no estilo seco e sombrio do Mein Kampf [A minha luta, livro de Hitler transformado em Bíblia do nazismo]). "O
Hitler de Vermes enfrenta uma sociedade para quem rir dele é há muito
um sinal de que aceita o confronto com o seu próprio passado. Mas é
também uma sociedade que entendeu que este passo é necessário para se
livrar desse mesmo passado”, defende o diário Süddeutsche Zeitung.
Com uma tiragem de 360 mil exemplares e lançado no outono de 2012, Er ist wieder da
é topo de vendas há várias semanas. O romance – de que foi feita uma
versão áudio muito boa, lida por Christoph Maria Herbst – será publicado
em francês, inglês e 15 outros idiomas, e a imprensa já especula sobre
uma futura carreira no cinema. Evidentemente, esta não é a primeira vez
que a encarnação do mal é recuperada por comediantes e outros artistas.
Charlie Chaplin ridicularizou Hitler em O grande ditador, em 1940. E, em 2007, estreou o filme de comédia Mein Führer, do cineasta alemão Dani Levy.
O reflexo do espelho não é lisonjeiro
O primeiro romance do jornalista Timur Vermes provoca, contudo, muito ranger de dentes na Alemanha. Daniel Erk, autor de So viel Hitler war selten (Raramente vimos tanto sobre Hitler), um livro que critica a "banalização do mal", está preocupado com o número crescente de comédias sobre o Terceiro Reich. "Para
quê interrogarmo-nos sobre o profundo antissemitismo da sociedade
alemã, ainda hoje, quando um louco é apresentado como o único
responsável?”, pergunta ele. “Esta é uma boa oportunidade para
os alemães se libertarem de qualquer culpa e responsabilidade. Este
Hitler é [afinal] o único responsável pela guerra e pelo genocídio."
Para Timur Vermes, os mesmos argumentos justificam o seu romance pela leitura contrária. Em Er ist wieder da, descreve um Hitler com medo, inquieto quando o público que não o teme lhe resiste. "Não temos Hitler em excesso”, considera Timur Vermes. “Temos
em excesso um estereótipo de Hitler, sempre o mesmo: o monstro que nos
deixa tranquilos. Eu próprio, durante muito tempo, aceitei essa visão de
Hitler. Mas ela não basta. Hitler exercia um verdadeiro fascínio. Se
tantas pessoas o ajudaram a cometer crimes, foi porque gostaram dele. As
pessoas não elegem um louco. Elegem alguém que as atrai ou por quem
sentem admiração. Apresentá-lo como um monstro equivale a fazer dos seus
eleitores idiotas. E isso tranquiliza-nos. Pensamos que, hoje, somos
mais inteligentes. Nunca elegeríamos um monstro nem um palhaço. Mas, na
época, as pessoas eram tão inteligentes como nós! Isso é que custa...
Muitas vezes, diz-se que, se um novo Hitler surgisse, seria fácil de
contrariar. Tentei mostrar, pelo contrário, que ainda hoje, Hitler teria
boas hipóteses de ser bem-sucedido. Só que de outra forma."
O romance de Vermes mostra como, na Alemanha do século XXI, um
demagogo teria novamente oportunidades: os meios para conquistar as
massas mudaram, tornaram-se mais modernos. Mas a intenção permanece a
mesma. "Vermes segura um espelho perante a sociedade alemã, que lhe devolve, apesar do riso, uma imagem pouco elogiosa", conclui o crítico literário do canal N-TV. Talvez resida aí a chave do seu sucesso.
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* Nathalie Versieux é uma jornalista francesa. É correspondente em Berlim de vários órgãos de comunicação francófonos, nomeadamente Libération,
* Nathalie Versieux é uma jornalista francesa. É correspondente em Berlim de vários órgãos de comunicação francófonos, nomeadamente Libération,
Traduzido por Ana Cardoso Pires
Fonte: http://www.presseurop.eu/01/02/2013
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