Verissimo*
Senhoras e senhores, obrigado. Antes de mais nada quero
pedir desculpas pelo atraso. Tivemos um pequeno problema nos bastidores,
um desentendimento, e o resultado é o que veem aqui no palco, um
quarteto de cordas reduzido a dois. Nosso violoncelista não concordou
com a mudança do programa de hoje, parte do meu projeto de popularização
da música de câmara, com a substituição do quarteto número 8 em si
menor, opus 59 de Beethoven por um arranjo para cordas de Ai Se Eu Te
Pego e se recusou a entrar no palco. O mesmo aconteceu com nosso segundo
violino, que também não concordou com a mudança, e está neste momento a
caminho de um hospital. Respeito democraticamente o direito de todos de
discordarem de mim, apesar de ser o líder do grupo, mas não admito que
insultem a minha mãe. No fundo, o que se discute é a adaptação da música
erudita aos tempos modernos, já que o público para os clássicos tem
diminuído assustadoramente e é preciso reagir. Os acontecimentos desta
noite são apenas o, digamos assim, ápice - a erupção do furúnculo, se me
permitem uma imagem nojenta - de uma situação que se prolonga desde que
eu expus ao grupo meu plano para a renovação do nosso repertório e das
nossas apresentações. Já tinha havido resistência à minha ideia de
entrarmos os quatro no palco de bicicleta, com máscaras de macacos.
Ninguém se manifestou então, mas sei que houve descontentamento e que
começou uma campanha para me desmoralizar, inclusive me chamando de
louco pelas costas. Houve até o acidente do violoncelo que caiu na minha
cabeça, que o violoncelista jurou ter sido mesmo um acidente, o que não
explica o fato de ele estar segurando seu instrumento como um tacape.
Também foi mal recebido meu convite para a Ivete Sangalo dar uma canja
conosco, tocando o instrumento que quisesse no quarteto numero 14 em sol
maior de Mozart, desde que mostrasse as pernas. Mas não tínhamos tido
um motim até esta noite. De certa forma, foi bom que isto acontecesse.
Pelo menos as coisas agora estão às claras, as posições estão definidas e
estamos livres de mesquinharias como a de espalharem o boato de que eu
toco com playback enquanto os outros três tocam ao vivo, e minha suposta
opção sexual pelo bestialismo, com preferência por galinhas. Também
acabam as frases desaforadas e as ameaças escritas nas minhas
partituras. Quero agradecer de público ao nosso violista - palmas para
ele, por favor - que permaneceu fiel e está aqui no palco comigo. Sua
lealdade se deve ao seu bom caráter e ao fato de que com a ausência dos
outros a renda do concerto desta noite será dividida por dois e não por
quatro, como acontece normalmente, e ele estar comprando uma lavadora.
Enfim, senhoras e senhores, obrigado pela sua paciência. As outras
modificações no programa são menores. O Dvorak será tocado com ritmo de
axé e reservamos uma surpresa para o final, quando receberemos no palco
Ernani, o cachorro cantor, que se juntará a nós no Vivaldi. E vocês
devem ter notado que tanto eu quanto o violista estamos nus, o que
acrescenta um toque naturalista à nossa apresentação, em contraste com o
costumeiro formalismo dos quartetos de cordas, que ninguém aguenta
mais.
Então, vamos lá. Ai Se Eu Te Pego.
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* Luis Fernando Veríssimo. Escritor. Colunista do Estadão e ZH
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,quarteto,1000837,0.htm 24/02/2013
Imagem da Internet
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