Amália Safatle, da Página 22
Até
ser empunhada nas bandeiras e defendida em todo o País, a noção de que
educação é um serviço fundamental levou tempo para ser assimilada. O
mesmo não se deu ainda com a imprensa livre: a sociedade brasileira
desconhece, até hoje, o valor de um jornalismo que fiscaliza o poder –
mesmo entre a maioria dos donos de empresas de comunicação. A denúncia
do professor Eugênio Bucci assume tom mais dramático quando ele compara o
atual momento do jornalismo a um iceberg derretendo. Amparada até então
em modelo de negócios do século XIX, a profissão é chacoalhada pelos
adventos tecnológicos que revolucionam o jeito de comunicar e se
financiar, ao mesmo tempo em que vive um paradoxo: as matérias
jornalísticas nunca foram tão lidas, seja nos veículos, seja nas redes
sociais.
Nada mudou, no entanto, no conceito de notícia e no papel do jornal:
cuidar do que é essencial, do que é de interesse público, dos temas
relevantes, não necessariamente do que vai disputar grandes audiências.
Não é o espetáculo que o salvará, mas a qualidade de sua produção –
acredita o professor.
Sobre as manifestações que rechaçaram os grandes veículos de
comunicação em praça pública, Bucci lembra que “a imprensa é uma
referência indireta da inteligência difusa que pressentimos nos
protestos todos”.
Página 22 – O que estamos vivendo é uma crise do
jornalismo em si, ou é a crise de um modelo de negócios do jornalismo
que se tornou ultrapassado nesta era pós-industrial?
Eugênio Bucci – Eu apontaria dois fatores a
considerar e aparentemente contraditórios. O primeiro é que os modelos
de financiamento do jornalismo passam pelo pior momento de sua história,
não há precedentes para algo tão sério. Quase todos os dias temos
notícias de demissão, enxugamento, redução. O tamanho desse mercado
parece que vai encolhendo, não há superação em receitas, em faturamento
publicitário. Há uma situação destoante em países como Brasil, Índia,
Rússia, China – um pouco dos Brics –, porque parece que nesses lugares
ainda há espaço para crescimento de circulação de veículos de papel. O
mercado publicitário aumenta, mas aí já não aumenta de forma generosa
para o jornalismo, e sim para o entretenimento e para a comunicação
eletrônica.
P22 – Mesmo assim, estamos em um país que não
sofre tanto com essa crise (internacional), embora haja uma gravíssima
crise do modelo de financiamento do jornalismo. De onde virão os
recursos?
EB- Os veículos de papel que migram para a internet
não conseguem ter o mesmo faturamento. É um faturamento que, quando bom,
é da ordem de um décimo ou um vigésimo do que se tinha antes.
P22 – Por que isso acontece?
EB – Porque na internet a publicidade não se
comporta da mesma maneira. Basicamente porque a imprensa deixou de ser
um canal obrigatório para os anunciantes encontrarem os seus potenciais
consumidores. O anunciante pode se comunicar diretamente. Em termos
muito apressados, os jornalistas não têm mais o que entregar.
P22 – Os anunciantes não precisam mais de intermediários?
EB – Os anunciantes não precisam mais deste
intermediário. Então, o primeiro fator é a diminuição do modelo de
financiamento dos veículos e da atividade jornalística. O segundo fator
que contradiz esse primeiro, aparentemente, é que nunca as matérias
jornalísticas foram tão lidas, não apenas pelos leitores ligados aos
veículos, mas pelos leitores que estão nas redes sociais. As
reportagens, os artigos, as críticas, os editoriais circulam por todo
lugar. Alguém manda para um amigo, as pessoas republicam, alguém
comenta, aí a outra pessoa vai ler no jornal, que muitas vezes têm
conteúdo aberto ou semiaberto. Então, nunca tivemos tanto público, e
tanta dificuldade em arrecadar uma receita que sustente a atividade
jornalística.
Isso, pra mim, é o que marca esse momento. O jornalismo é uma
atividade essencial, encontra leitores e tem prestado serviços cada vez
mais relevantes. Agora mesmo, o Guardian, por meio de um jornalista
americano que mora no Brasil, acabou de revelar que os EUA estão
monitorando conversas telefônicas. Essa é uma revelação de uma redação.
Veja o papel do jornalista na Primavera Árabe, na Turquia, tudo isso
mostra uma relevância, se não inédita, muito grande.
P22 – O consumidor dessa informação não quer pagar por ela?
EB – Esta é uma pergunta central. Não conseguimos
saber se quer ou não quer pagar. Mas esbarra na expressão “modelo de
negócios”, porque é preciso ter uma proposta para esse leitor. “Olha,
você quer ler isso, então funciona assim: você compra esse envelope, e
aqui estão as matérias, ou paga uma mensalidade e lê quantas matérias
quiser, ou paga por clique.” Não temos maneiras de possibilitar que as
pessoas sustentem o jornalismo diretamente. Os modelos que existem são a
assinatura, que vem da mídia impressa. Eu vou receber as notícias do
dia impressas em umas folhas de papel, que posso comprar na banca ou
receber em casa. Esse é um modelo que foi desenvolvido do século XIX
para o XX, e que vinha servindo. Com a mudança do padrão tecnológico, a
cadeia de valor do negócio da imprensa mudou também.
Antes, como este documento
comenta (ele se refere a “Jornalismo Pós-Industrial: Adaptação aos
novos tempos”, produzido pelo Tow Center for Digital Journalism, da
Universidade Columbia, e traduzido pela Revista de Jornalismo ESPM), uma
empresa jornalística concentrava a atividade de apuração e redação da
notícia, a venda de publicidade e a distribuição. E a impressão. No
subsolo da redação, estavam as rotativas. Tudo isso gerava uma cadeia de
valor cujos recursos voltavam para a empresa jornalística. Hoje, na era
digital, uma redação é apenas uma redação. A distribuição é paga para
as empresas de telecomunicação, de telefonia, de tecnologia. É um
dinheiro que não é pago mais para a redação. E a publicidade está
dispersa nos cliques que pessoas dão, e vão remunerar outra empresa.
Uma saída possível são as redações que vivem de doações, a exemplo da ProPublica (redação americana sem fins lucrativos, saiba mais em “Prenda-me, se for capaz”).
Essas redações podem propor o seguinte pacto ao doador: você me dá um
tanto de dinheiro, com essa quantia eu financio por 2 ou 10 anos a
atividade jornalística investigativa e as pessoas vão acessar isso aqui
de graça. Mas será que isso sustenta a imprensa?
Para esse novo padrão tecnológico, não temos ainda um modelo de
negócios. Pode até ser que a pessoa queira pagar, mas não existe como
pagar. Ela vai depositar um dinheiro, fazer uma doação, como vai medir
isso?
P22 – Não temos porque talvez não haja ainda demanda para isso?
EB – Sim. Provavelmente a gente não tem porque o
tempo da elaboração tem sido muito mais longo que o da maturação dessas
novas formas de comunicar. A institucionalização que poderia levar a um
modelo de negócios demora mais. Antes que alguém tenha sido capaz de
conceber, pôr em prática, institucionalizar aquele modelo, ele já vem
sendo praticado de outras formas. Os jornais são pegos no contrapé. O
New York Times tem sido observado como farol, todo mundo fica observando
seus movimentos para ver se vão funcionar ou não. Ele já teve períodos
em que fechou o conteúdo, depois percebeu que, restringindo o conteúdo e
abrindo só pra quem pagasse, ficava do lado de fora de um movimento
muito forte que é o da internet gratuita. E então abriu o conteúdo de
novo. Aí ocorreu que deveria fazer uma cobrança parcial, e criou o
paywall, por meio do qual os leitores pagam de acordo com a quantidade
que usam. E ainda estão testando isso aí, mas ainda não têm uma
conclusão.
Essa é uma das experiências, há várias outras. Venda de matéria a
granel serve para matéria de arquivo, não serve para matéria quente.
Então como é que isso vai ficar? As assinaturas nos tablets vão aos
poucos se tornando mais importantes, mas isso nos grandes jornais
americanos, na revista Economist. A Veja no Brasil parece que já tem uma
circulação semanal da ordem de 60 mil exemplares em tablets, que pode
ir até 100 mil rapidamente. Mas isso é suficiente para sustentar essa
publicação? Ela cobra o mesmo preço no tablet e no papel, com a vantagem
de que no tablet não tem os custos do papel.
Eu sou do palpite de que as pessoas querem pagar, mas ainda não dá para afirmar isso.
P22 – Segundo o ensaio do Tow Center, que
citamos há pouco, existe uma tendência de contínuo enfraquecimento da
noção daquilo que constitui notícia – e por conseguinte daquilo que
constitui uma organização jornalística. Os autores mencionam o exemplo
do Facebook, que, embora seja estruturado de forma muito diferente de
uma organização jornalística, é um elemento crucial do novo ecossistema
do jornalismo. Com isso, a discussão vai muito além do modelo de
negócios e chega a “o que é notícia”?
EB – Sem dúvida. E também a “o que é jornalismo”.
P22 – Então esta é uma crise de identidade do jornalismo?
EB – Muitos acreditam que sim, que se trata de uma
crise quase insuperável de identidade. Alguns não se veem mais na
profissão, acham que vão encontrar lugar nas assessorias de imprensa, na
comunicação corporativa, no marketing eleitoral.
P22 – Temos mais perguntas que respostas?
EB – Sim, mas o bom é que estamos conseguindo fazer
perguntas sistêmicas. Que não são mais de campos isolados, e conseguem
iluminar questões laterais, fenômenos contíguos, dando a sensação de que
começamos a tratar de um todo.O que é notícia? É uma informação que,
quando revelada, altera expectativas. Muda o seu senso de futuro, a
inserção no seu ambiente. Uma notícia diz que a identidade de uma pessoa
não é mais aquela. Diz que onde todo mundo pensava que existia uma
cabine telefônica existe um poço de petróleo, ou um centro de venda de
cocaína. Uma notícia muda o selo que a linguagem atribui a cada coisa,
muda o nome, o significado das coisas. Uma notícia é sempre algo que
alguém quer esconder. Sempre fere algum poder. Sempre dá vantagem a um
lado e leva desvantagem a outro lado. Fere suscetibilidades, interesses
ou territórios. Isso mudou? Talvez menos. Mas o que mudou é: o que é
relevante para as pessoas? O que é o interesse comum? Será que um
assunto de interesse público é o que desperta curiosidade? A saia da
Lady Gaga rouba a atenção da violação de privacidade americana.
O que a era digital trouxe muito foi uma expansão da conversa do
mundo da vida. Os assuntos de interesse comum permanecem, mas a
futilidade, a vaidade, o narcisismo, isso explodiu, ganhou uma dimensão
que não tinha. Isso não veio com a internet, mas a internet dá muito
impulso a esses traços. Parecem destroçar o próprio conceito de notícia…
mas não, acho que aí tem uma pista falsa.
O jornalismo terá de cuidar do que é essencial, do que é de interesse
público, terá de tratar de temas relevantes, não necessariamente do que
vai disputar grandes audiências. Não é o espetáculo. Mas, tratando de
temas centrais, de interesse público, terá de ser subsidiado, como
sempre foi. O jornalismo de qualidade sempre foi subsidiado de alguma
forma.
P22 – A crise do financiamento já está afetando a qualidade do jornalismo?
EB – Não sei se isso já está acontecendo, mas a
tendência é que aconteça. Três coisas estão certas. Uma: trocar equipes
mais caras por mais baratas. Duas: “pejotização” da imprensa (o
jornalista deixa de ser assalariado e se transforma em uma pessoa
jurídica prestadora de serviços), com renegociação de salário para
valores mais baixos. Três: a escala de circulação de certos veículos
tende a mudar, o jornalista não vai trabalhar predominantemente em
veículos de grande circulação, mas em núcleos de inteligência, espécies
de think tanks, com remuneração menor.
P22 – Para essa atividade mais pulverizada, o
crowdfunding, as estratégias colaborativas e os formatos mais orgânicos e
híbridos seriam os novos caminhos? (leia mais aqui)
EB – O crowdfunding é um esboço de um modelo de
negócios. Mas funciona assim: quero fazer uma reportagem na Namíbia em
outubro. Estamos em junho, e quem quiser ver isso me financia e, se eu
alcançar a meta, vou lá e faço a reportagem; se não, devolvo o dinheiro
para todos que me pagaram. Isso não serve para a manutenção de uma
cobertura diária que fiscalize o poder. Porque este tipo de cobertura
não tem como funcionar negociando pautas. Até porque as pautas são
repentinas ou precisam ser trabalhadas em sigilo. O crowdfunding é uma
novidade, tem sua função, mas não é e nunca será o modelo que permitirá o
financiamento da imprensa independente.
A pergunta ainda a ser respondida é: como vamos financiar a
manutenção de redações independentes, compostas de jornalistas críticos,
bem preparados, caros, ou relativamente caros? Uma maneira é um
conjunto de leitores pagar uma espécie de assinatura: eu pago para você
existir. Porque com você existindo eu tenho a garantia de que certas
coisas serão fiscalizadas e vão circular, assim como eu pago o serviço
de iluminação, pago o imposto para ter escolas, vou pagar para a
imprensa livre existir. Isso precisa ser inventado e talvez esteja a
caminho. Há outros modelos. A doação, como já falei, deixa uma pergunta.
Arranjo dez milionários que concordam em se cotizar e sustentar uma
redação independente. Mas e quando houver uma investigação sobre um
desses milionários? E se for um doador só? Esse cara vira o dono da
verdade?
Isso mostra que um pouco de publicidade pode ser bom, ao criar um
certo distanciamento crítico entre essa redação e os doadores. Os
doadores não precisam desaparecer do mapa, mas devem ficar um pouco mais
distantes, por meio da publicidade. Só a publicidade, porém, não é uma
boa receita. Isso funciona na televisão, no rádio aberto, quando o
sistema da imprensa envolve veículos que são diretamente sustentados
pelos leitores, pela sociedade, que dão um componente crítico ao sistema
como um todo. Mas um sistema que seja unicamente financiado pela
publicidade será de potencial crítico muito aquém do desejado. Tende a
ser subserviente não ao anunciante, mas à lógica do mercado, à sua
mentalidade.
(Jürgen) Habermas (filósofo e sociólogo alemão ligado à Escola de
Frankfurt) já falou disso: dinheiro público para financiar jornais,
subsidiando leitores. O dinheiro público passa a comprar um percentual
significativo de assinaturas e as distribui para as pessoas.
P22 – Seria uma espécie de Bolsa Jornal?
EB – Sim. Mas se isso for além de um limite, e ficar
na mão do poder político, como este será fiscalizado? Então, nada disso
é satisfatório. Eu acredito mais no modelo pelo qual o público paga
caro e financia, dando sustentação política traduzida em sustentação
financeira, assim como as pessoas podem dar dinheiro para o Greenpeace
ou para um partido político. O PT, quando apareceu, era financiado por
contribuições de gente comum. A sociedade se mobiliza em torno dessas
coisas. Essa carga de sustentação política poderia ajudar muito a
imprensa nesse momento. Isso traz outro risco também, aí a imprensa pode
ser partidária, representativa desse recorte da sociedade. Por exemplo,
os professores financiam a sua imprensa, logo será uma imprensa com uma
fisionomia sindical, de defesa corporativa da categoria.
P22 – Não será plural.
EB – Tende a não ser. Todos os modelos que estou
listando aqui têm prós e contras e precisam ser contrabalançados por
outras formas. Isso é que ainda está por ser inventado.
P22 – O senhor percebe alguma angústia de outros
setores da sociedade que não seja o jornalístico com o efeito disso
tudo para a sociedade democrática? Não se veem os empresários nem o
governo preocupados com essa crise. Não conseguimos levar essa pauta
para fora do nosso círculo?
EB – Os jornalistas estão vendo a coisa acabar. É
como se nós, jornalistas, estivéssemos em cima de um iceberg, no qual
sempre fizemos a nossa festa… tinha um bar nesse iceberg, tinha
guarda-sol, hotel, mas o planeta começou esquentar e o gelo, a derreter.
Uma parte separou-se do bloco de gelo e começou a diminuir. Se cava
muita gente em cima, o pedaço iria afundar, então pessoas foram
expulsam, jogadas no mar, morreram afogadas. Os jornalistas estão em
cima de um iceberg que está derretendo, estão desnorteados. Estou
generalizando, mas é uma generalização muito próxima do real. Na
segunda-feira, o diretor de redação vai embora. Na outra segunda, o
diretor-comercial vai embora. E na outra segunda, começa a ouvir o boato
de qual revista vai fechar, tal empresa vai falir. Enquanto isso, o
resto da sociedade não está se dando conta como deveria.
P22 – Até porque os jornais não falam da própria crise.
EB – Cobrem pouco a própria crise. Temos um exemplo:
o recrudescimento da violência contra jornalistas no Brasil.
Jornalistas são ameaçados, alguns tiveram de se exilar, outros foram
assassinados e os jornais não cobrem isso, com medo de criar mais
encrenca além do que têm, chamar muita atenção para si ou dispor outros
jornalistas a ameaças iguais. Há uma discussão contida, intimidada,
reprimida. A imprensa não tem sabido falar de si mesma. De outra parte,
as empresas podem transformar essa crise em uma agenda de discussão
comercial, empresarial. “O jornalismo é importante, logo a minha empresa
precisa existir. Então me ajudem a garantir a sobrevivência da minha
empresa.” Mas isso também tem sido malfeito. Por fim, falta uma
consciência cívica sobre a importância da imprensa livre.
Nos EUA, esse debate está um pouco melhor, tanto que houve muita
articulação para criar as redações sem fins lucrativos. São várias e
estão fazendo um ótimo trabalho. O ProPublica
já ganhou um ou dois prêmios Pulitzer, em associação com outros
jornais. Mas, no Brasil, estamos muito aquém disso. Tem uma redação
independente, por exemplo, que é o Observatório da Imprensa,
sou do conselho fiscal. Deveria haver fila de gente querendo doar
dinheiro para isso, mas não há. Ninguém vivenciou a importância da
imprensa livre.
Nós não assimilamos como sociedade a vantagem vital que é ter uma
imprensa fiscalizando o poder. Não sabemos que isso é um serviço de
primeira necessidade. É algo que não é óbvio ainda, como é óbvio que a
escola precisa ser boa. Isso aos poucos foi se tornando claro no Brasil:
a escola precisa ser boa. Houve um trabalho muito intenso de debate
público para que nós chegássemos em um ponto ainda precário de discussão
sobre educação. Mas clareza de que a imprensa é essencial nós não
temos. Nós não temos nem mesmo entre a maioria dos empresários de
comunicação no Brasil.
P22 – As escolas de jornalismo estão colocando os alunos no mercado dizendo o que para eles?
EB – Eu gosto muito de ser professor, mas sou da
opinião de que o ensino do jornalismo no Brasil é muito fraco. Esse
ensino ficou ruim porque se acomodou a uma situação em que o diploma era
obrigatório para o exercício da profissão. Então, bom ou mau, o sujeito
vai precisar de um título para trabalhar. Hoje, o diploma não é mais
obrigatório, mas vai voltar a ser, porque a emenda constitucional que
acrescenta um parágrafo no artigo 220 da Constituição (sobre a
manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação) está
quase aprovado. Isso será discutido no Supremo, para então essa
obrigatoriedade finalmente cair, como em todas as democracias que a
gente respeita. Mas as escolas ficaram paradas nesse negócio da
exigência do diploma. Elas despertaram pouco para a necessidade de
formar um profissional para competir com qualquer outro que queira
produzir conteúdo.
P22 – É a exigência do diploma que levou a essa
acomodação? Em outras profissões, é exigido diploma mas não
necessariamente o ensino é ruim.
EB – Sim. Esse raciocínio só serve como hipótese para o caso do jornalismo. Pode ser que não se comprove, a causa pode ser outra.
P22 – A causa poderia ser o que o senhor falou antes: não se tem plena clareza de que o jornalismo presta um serviço importante?
EB – Isso também. No Brasil, nós achamos que
jornalista e assessor de imprensa são a mesma coisa. Isso é um problema
para o ensino. Porque, achando que são a mesma coisa, você não ensina o
jornalista a ser fiscal, a ser vigilante, a ser crítico, e a ser
independente. Pois tudo isso o assessor de imprensa não pode ser. E se
os dois fazem a mesma coisa, teremos jornalistas encarregados de cobrir o
poder com a mentalidade de difusores de informação e não com uma
postura de oposição. O jornalismo é de oposição, no sentido
institucional. Ele não é confiável como um correligionário para o
governante. O governante olha o jornalista com cautela, e tem de ser
assim. Mas, para isso, o jornalista tem que ser treinado. Treinado para
encontrar problemas onde o governo vê solução. Já o assessor de imprensa
é treinado para vender soluções que seu cliente gostaria de vender.
Claro que um jornalista tem muito preparo para ser um assessor de
imprensa, e não há nada de errado nisso. O problema é uma escola não
entender que jornalistas e assessores estão em campos antagônicos. Aí
temos um ensino alquebrado, de espinha dobrada, de cabeça baixa,
subserviente.
P22 – Não estou dizendo se pessoalmente sou a
favor ou contra a exigência de diploma, apenas polemizando: esse treino
para ser o jornalista que o senhor descreveu (fiscal do poder, crítico)
pode se dar fora da escola de jornalismo? O ambiente para esse treino
não deveria ser a escola de jornalismo?
EB – Claro que deveria.
P22 – Então o diploma não deveria ser obrigatório por essa razão?
EB – É uma ótima pergunta. Há bons argumentos dos
dois lados. Mas por que nos países onde não há obrigatoriedade do
diploma o bom mercado dá preferência para os que estudaram jornalismo?
Exatamente porque estão mais preparados para essa função. O principal
argumento contra a obrigatoriedade não está exatamente na qualidade do
ensino, embora seja muito provável que a faculdade melhora quando não
tem obrigatoriedade. Mas não está aí o ponto principal. O ponto é
impedir um limite para quem quer que seja editar um jornal. Porque isso
seria uma restrição à própria liberdade de imprensa. A pessoa
semianalfabeta que queira editar um jornal precisa ter o direito de
fazê-lo, sem restrição. Provavelmente será um jornal ruim, mas não
poderia haver da parte da legislação um obstáculo para que essa pessoa
se manifeste.
O diploma obrigatório não produz escolas melhores, mas evidências na
Espanha, França, EUA e tantos outros lugares mostram que, sem o diploma,
criam-se escolas de referência.
P22 – Esse momento de crise de financiamento e
de incertezas de modelo tem sido discutido nas principais escolas de
jornalismo? Os alunos estão sendo preparados para atuar em que cenário?
Industrial, pós-industrial?
EB – Eu tenho insistido muito para que os cursos
ensinem a montar negócios, que ensinem empreendedorismo. Os cursos
precisam assimilar a noção de que estão formando quadros não para ser
empregados, mas muitas vezes para criar negócios e inventar formas de
trabalhar. Não podem se resignar com o destino de formar desempregados. O
jornalista precisa ter capacitação para ser um empresário se quiser, ou
um empreendedor público, ou seja, criar veículos públicos. Ele precisa
entender disso.
[Como esta entrevista foi feita antes de eclodirem com força os
protestos Brasil afora, enviamos posteriormente por email a seguinte
pergunta, respondida por escrito:]
P22 – Os protestos espalhados pelo Brasil
evidenciaram um claro descontentamento com os veículos jornalísticos
tradicionais. Houve carros de grandes emissoras de TV queimados,
jornalistas agredidos, cartazes contra a mídia. Como esses fatos devem
ser interpretados? Sinalizam a insatisfação com as instituições de forma
geral (partidos, governos, empresas de comunicação)? Se sim, como isso
se relaciona com a crise do jornalismo? O público de hoje não quer mais
consumir o tipo de produto desses veículos?
EB – As pautas mais comuns das manifestações – por
mais diversas que sejam essas pautas –, por incrível que pareça, vêm em
grande medida de reportagens de diversos órgãos de imprensa, que também
abastecem as redes sociais. A corrupção, entre outros temas, vem sendo
retratada em incontáveis reportagens, com as mais diferentes orientações
editoriais. A imprensa, desse modo, é uma referência indireta da
inteligência difusa que pressentimos nos protestos todos.
Estes tendem a repelir partidos e autoridades e, por certo, repelem
também os símbolos da mídia (na exata medida que a mídia é um dos
poderes vistos como establishment), mas também se alimentam da imprensa.
Paradoxalmente, manifestam-se preferencialmente para as câmeras de TV.
Ao ir às ruas, as massas também querem ir para o Jornal Nacional.
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Fonte: http://mercadoetico.terra.com.br/arquivo/nao-deu-no-new-york-times/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=mercado-etico-hoje
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