Eugênio Bucci*
Começo por uma laranja estragada que uma vez segurei com a minha mão direita. Mais que madura, ela estava passada. Uma espécie de gosma ressecada, num verde escuro abjeto, espalhava-se pela casca amarela, delimitando continentes irregulares. Isso já faz muito tempo, lá se vão três décadas ou mais, mas não esqueço. Fiquei dividido entre a curiosidade adolescente e a repugnância instintiva - e também ideológica: a imagem viva daquela praga na casca do fruto tinha conspurcado uma reserva imaginária que eu trazia da infância.
Uma laranja, aos meus olhos, não era uma mercadoria de supermercado, mas uma dádiva sem valor de troca, que a gente colhia com as mãos. No quintal da casa em que cresci, havia um pé de ilhoa, que nos deu safras incontáveis, doces sem ser açucaradas. Talvez por isso, quero dizer, talvez em função desse vínculo afetivo, a laranja estragada entrou no meu código visual como um agouro maligno. Na hora, olhei para a esfera vegetal que eu tinha na mão como se olhasse para o planeta Terra - e para a crosta imunda na sua superfície como a civilização humana. Acho que, já naquele tempo, circulavam na TV e nas revistas essas fotografias tiradas de aviões ou de satélites que mostram as cidades se alastrando, as matas dizimadas, enfim, a expansão predatória das populações como um câncer desgovernado. Deve ter sido essa a associação que fiz. Em suma - ou em sumo -, aquele fruto imprestável vaticinou: "O homem é um ser parasitário cujo destino é matar o hospedeiro."
Joguei no lixo a fruta imprestável. Livrei-me dela com asco, mas a ideia do planeta como laranja - no feminino ou no masculino - permaneceu comigo. Ainda hoje, quando, por exemplo, releio Max Weber, aquela ideia volta a ecoar. Há cem anos, Weber escreveu que "o poderoso cosmos da ordem econômica moderna (...) determina com pressão avassaladora o estilo de vida de todos os indivíduos que nascem dentro dessa engrenagem e talvez continue a determinar até que cesse de queimar a última gota de combustível fóssil". Nesse caso, o suco da laranja é o petróleo. Sugando-o com avidez, a civilização, alastra o "espírito do capitalismo", e sua matéria, por terra, mar e ar.
Dito e feito. Depois dessas palavras, vieram as guerras mundiais, o genocídio, o terrorismo, a corrupção no Distrito Federal. Até que seja queimada a última gota de combustível fóssil, parece não haver freios para a ganância humana, por maiores que sejam os desastres que ela acarreta.
Ou melhor: parecia não haver freios. Desde que surgiu isso a que temos chamado grosseiramente de consciência ecológica, os "indivíduos que nascem dentro da engrenagem do poderoso cosmos da ordem econômica moderna" começaram a falar em desenvolvimento sustentável, em convivência com a natureza e, mais recentemente, em combater, com boas ações, a tendência de aquecimento global. São notícias excelentes, é claro. Mais do que para o clima, são notícias excelentes para a autoestima da humanidade - o que eu digo, admito, com uma ponta de ironia. Mas - e aqui não há ironia alguma - são também notícias alentadoras para quem acredita em amadurecimento da política.
Antes da política, falemos um pouco sobre a autoestima (a ironia será mínima). A história da civilização pode ser descrita como um encadeamento de notícias péssimas, traumáticas: século a século, fomo-nos dando conta de que não somos o centro do universo, de que não fomos fabricados pelas mãos de Deus e de que não é a nossa consciência que move a História, aquela tal, com H maiúsculo. Somos joguetes do inconsciente, seres bestiais munidos de tecnologias absurdas; nosso legado se resume a uma mescla de poluição, fome, infelicidade e, pior do que tudo, irrelevância cósmica: não faz a menor diferença para o Sistema Solar se a humanidade existe ou deixa de existir. Assim, antes mesmo de a humanidade ter sido extinta, sua autoestima já estava dizimada. Foi então que, de repente, quando nada mais havia para retirar da nossa testa o selo definitivo de irrelevantes, os cientistas anunciaram que o nosso modo de vida altera em um ou dois graus a temperatura média do planeta. Eis a notícia que, se ainda não salvou o clima, reavivou a autoestima dos humanos - que se veem autorizados a crer que fazem alguma diferença, nem que seja no comportamento dos termômetros que a gente põe no jardim de casa.
Isso não quer dizer que o frenesi ecologista não passe de um espasmo do antropocentrismo mais fútil, produto da crença nada científica de que a natureza não passa de uma consequência dos nossos atos. Esse frenesi pode ter muito disso, sem dúvida alguma, só que ele não é apenas isso. Há modismo nisso tudo. Mas há muito mais que isso.
Aqui chegamos à hipótese de que talvez esteja em curso um amadurecimento político de grande porte. Pela primeira vez, as negociações entre as nações levam em conta aspectos ambientais, que, por definição, desconhecem fronteiras políticas e ultrapassam fronteiras estritas de classes sociais, de nacionalidades, de ideários fechados e de religiões. A humanidade como categoria política nunca fez tanto sentido. O planeta como "pátria" comum deixa de ser um devaneio poético para virar uma noção prática e eficaz, manejada tanto por diplomatas como por ONGs e por estadistas. À luz desses avanços conceituais, descortina-se a possibilidade de um novo vocabulário político, orientado por valores igualmente novos. Eles não precisam ser, como muitos vêm cobrando, "científicos": basta que sejam mais humanos, com tudo o que há de impreciso no humano; basta que, em lugar da concorrência e da dominação, cultivem a convivência e a reconciliação.
Sim, a notícia é boa. Se o homem vai mesmo matar o hospedeiro, que o mate mais devagar. Para começar, está mais do que bom.
*Eugênio Bucci, jornalista, é professor da ECA-USP
FONTE: Estadão online - 03/12/2009
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