quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

As duas américas

O Brasil e os EUA têm mais em comum do que parece

MORANDO NO BRASIL, é fácil imaginar que você foi transportado em um daqueles romances com finais alternativos – neste caso, como os EUA teriam se desenvolvido se algumas poucas coisas tivessem acontecido de outra forma. Ambos são países continentais no Hemisfério Ocidental com democracias federativas, onde os governos estaduais têm um poder considerável. Ambos foram colonizados por pequenas nações navegantes europeias antes de ficar independentes com 50 anos de intervalo entre si. As suas populações são formadas pelos descendentes dos habitantes originais, dos primeiros colonizadores e de escravos africanos, somados mais tarde aos migrantes europeus e asiáticos. Um fluxo recente proveniente dos países vizinhos completa a mistura. O caldeirão de misturas brasileiro é, talvez, ainda mais bem-sucedido que o dos EUA.

Os dois países se parecem surpreendentemente religiosos para o olhar europeu, com diferentes seitas cristãs competindo vigorosamente por fiéis. A maior de todas as multinacionais brasileiras pode ser a Igreja Universal do Reino de Deus, uma seita pentecostal que vive sob investigação, devido ao seu marketing superentusiástico e sua contabilidade opaca. Ambos os países mostram uma forte preferência pelo consumo em detrimento da poupança quando a situação está boa. O Brasil tem uma cultura toda própria, mas olha mais para os EUA em busca de inspiração do que para os vizinhos que falam espanhol.

E ainda assim, as diferenças são gritantes. Os EUA são ricos, o Brasil é pobre. O Brasil é mais da esquerda. Os EUA fazem guerras, o Brasil não. Os EUA gostam de seu capitalismo o mais desbragado possível, o Brasil prefere que seus mercados tenham uma forte presença do governo.

Olhando mais de perto, no entanto algumas dessas distinções perdem a nitidez. O Brasil é mais esquerdista na teoria que na prática. A eleição presidencial do próximo ano deve se resumir numa escolha entre um candidato do esquerdista Partido dos Trabalhadores e outro do Partido da Social Democracia Brasileira, de centro-esquerda. Ainda assim, a maioria do dinheiro que o governo gasta vai para pessoas que são comparativamente ricas. A principal razão da diferença de distribuição de renda entre um e outro é o gasto público mais regressivo do Brasil. “Nós vivemos na situação paradoxal de um governo que gasta muito e beneficia poucos”, declarou Antonio Palocci, quando se tornou ministro da Fazenda em 2003.

Desde então um pouco mais de dinheiro público acabou indo para os mais pobres, mas, proporcionalmente, a quantidade continua pequena. Na verdade, o Brasil tem muitas políticas públicas que seriam consideradas injustas e regressivas nos EUA. Os filhos de pais que podem pagar boas escolas privadas tendem a ocupar as vagas das boas universidades públicas gratuitas, enquanto os filhos das famílias mais pobres muitas vezes têm de pagar para frequentar estabelecimentos piores. O BNDES transfere dinheiro dos trabalhadores mal pagos para os balanços das grandes companhias brasileiras. Ele apoiou a transformação da JBS-Friboi na maior produtora mundial de proteínas animal, lugar conquistado pela empresa através de aquisições nos EUA. Mesmo assim, o grupo continua de propriedade privada: uma bizarra apropriação de recursos públicos que causaria uma comoção em outros países.

Os brasileiros também têm uma abordagem mais americana do capitalismo e do livre mercado do que pode parecer à primeira vista. Muitas das histórias de sucesso do País nos últimos quinze anos, da flutuação livre do real e autonomia do Banco Central à privatização de empresas estatais que prosperaram desde então, são produto de um modo de pensar semelhante sobre quais arranjos econômicos funcionam melhor. É preciso dar crédito ao presidente Lula, que não reverteu essas mudanças como muitos temiam.

O choque entre uma classe média crescente e um governo que muitas vezes parece estar bloqueando as suas aspirações cria uma narrativa tipicamente americana sobre o indivíduo determinado sendo constantemente puxado para trás pela mão pesada da burocracia. Muitos dos empresários e banqueiros brasileiros mais novos fizeram pós-graduação em escolas americanas de administração. Um bom número deles tem pontos de vista que não ficariam deslocados no American Enterprise Institute ou outros think-tanks do livre mercado.

Se as dúvidas sobre o livre mercado nos EUA e a confiança brasileira nele continuarem a crescer, elas podem acabar convergindo em pouco tempo. Agora até o presidente Lula denuncia o protecionismo, embora muitos governos estrangeiros, observando as tarifas de importação ainda relativamente altas do Brasil, não estejam muito convencidos. As importações e exportações brasileiras em conjunto corresponderam a 22% do seu PIB em 2007, comparado com 23% nos EUA. Acima de tudo, o Brasil agora parece confiante que uma economia mais aberta não condená-lo a um papel de produtor de café para os países ricos.
O Brasil não criou nenhuma empresa automobilística ou
de computadores que tenha grandes vendas para o exterior


Ainda que o Brasil tenham finalmente descoberto a fórmula para liberar a sua riqueza, também é verdade que a maioria dos sucessos econômicos do País está concentrado no setor de commodities. O Brasil não criou nenhuma empresa automobilística ou de computadores que tenha grandes vendas para o exterior. A Embraer é um exemplo isolado de grande exportadora de alta tecnologia. Pode-se dizer o mesmo do setor de serviços. Isso é uma pena para um país vibrante de criatividade e invenção.

Parte do setor de commodities, como a perfuração em águas profundas da Petrobras, certamente requerem altos níveis de competência técnica. Mas o obstrutivo governo brasileiro para limitar seus esforços de competição internacional apenas aos setores em que as vantagens naturais os tornam praticamente imbatíveis. Comparado com seu próprio passado, o País tem se dado surpreendentemente bem. Comparado com seu potencial, ainda deve muito.

Em relação ao seu tamanho, o Brasil gasta bem menos que a média da OCDE em pesquisa e desenvolvimento, e a maioria desse gasto vem do governo: o setor público responde por cerca de 55% do investimento em inovação tecnológica. A Coréia do Sul, com um quarto da população brasileira, registra cerca de 30 vezes mais patentes.O País precisa fazer alguma coisa a esse respeito: para poder viver de acordo com a moeda forte que acompanha o sucesso sob uma taxa de câmbio flutuante, ele precisa aumentar a produtividade.

Comparado com seu próprio passado,
o País tem se dado surpreendentemente bem.
Comparado com seu potencial, ainda deve muito.


Como os EUA, o Brasil é tão grande e variado que muitas vezes para conter pelo menos dois países separados. Um deles é um lugar com dez fronteiras terrestres e nenhuma guerra, onde as pessoas falam uma única língua; onde não há conflitos religiosos; e onde três quartos da população comparecem para votar, com os resultados da eleição sendo anunciados no dia seguinte. Esse país tem políticas econômicas e mercados financeiros sofisticados, assim como uma coleção crescente de companhias de sucesso mundial. Ele como sushi e normalmente está bronzeado.

O outro Brasil tem uma taxa de homicídios renitentemente alta e uma força policial violenta. Muitos dos seus políticos não veem nada de errado em roubar dinheiro público ou nomear parentes para cargos nos seus feudos pessoais, e se recusam a renunciar quando descobertos. É um lugar de miséria onde 17% dos domicílios não têm água encanada e um número grande demais de famílias mora em barracos improvisados debaixo de viadutos. Um lugar onde muitas pessoas condenadas por crimes graves ficam impunes e aqueles presos vivem uma existência brutalizada. E um lugar de uma devastação ambiental que o governo não consegue evitar.

Porque essa reportagem especial lida com negócios e finanças, ela se concentrou no primeiro desses lugares, mas ambos os Brasis são parte desse grande território verde que se projeta no Atlântico. O que torna o País tão excitante neste momento é que, graças à sua recém-descoberta estabilidade, o melhor Brasil agora tem uma chance muito maior de prevalecer.

Coordenação e tradução: Ed Sêda.
FONTE: – Revista CARA CAPITAL nº 573 – 25 NOV 2009, pp. 56-57.

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