sábado, 12 de dezembro de 2009

Coração selvagem



Entusiasmado, o gaúcho Luis Antônio de Assis Brasil definiu o livro de estreia da conterrânea Lívia Sganzerla Jappe como “uma história atemporal e sem território” que desperta imediata vontade de releitura, por ser “parábola sobre a vida e suas circunstâncias”. Vertiginoso, às vezes exasperante, Cisão (7Letras, 68 páginas, R$ 25,00) é assumido filhote temporão do Raduan Nassar de Um copo de cólera. “O autor que me mobiliza em instâncias mais profundas é Raduan, a quem reverencio. Ele é magnânimo e irretocável no rito de amor que estabelece com as palavras”, admite a jornalista e escritora de 28 anos, radicada em Brasília. As Marguerites Duras e Yourcenar, Clarice Lispector, Hilda Hilst, Fernando Pessoa, Gaston Bachelard e Sêneca também ressoam no fluxo criativo da autora, que trabalha na assessoria internacional do Ministério da Justiça. Eis o que Lívia tem a dizer:

De onde surgiu Cisão? De pulsão interna ou da observação?
Das duas coisas. Creio que a pulsão interna também se faz por observação, de modo que submeti a alma a uma intensidade íntima muito verdadeira. Nossos desejos dominam nossa percepção sobre as coisas, e, quando os despimos, o que aparece é a beleza e a força das emoções em estado bruto. As paisagens interiores de Theodoro e Inácia me chegaram num jorro textual, mas foram se fazendo muito antes, na observação de coisas pequenas, como um certo modo de nos colocarmos diante da vida, das perdas, do amor e das relações de afeto. Theodoro não acessa o canal da própria alma e Inácia acessa o seu em demasia. O intelecto lhes atrapalha o sentir porque vivem em mundos interiores inacessíveis e os diálogos são embates por meio dos quais estes mundos se tornam visíveis.

Aparecem no livro algumas sentenças assertivas como “Obnubilar o amor, às vezes, é perversão disfarçada de boa-fé” ou “O perdão é vil quando motivado pela coerência”. De onde vêm as suas certezas?
Não tenho certezas a respeito de coisas tão profundas como aquelas que regem o amor e estou longe da falsa ilusão de possuí-las. Contudo, acredito integralmente na potencialidade da entrega. Sentir intensifica coração e alma. Hilda Hilst: “A viva compreensão da vida é segurar o coração”.

Como escrever sobre o amor sem cair “nas estantes do pieguismo”, para usar a expressão que aparece em um dos capítulos?
Eis um enigma dos mais belos e para o qual, creio, cumpre apenas hipotetizar. Me tocou profundamente o que Fernanda Montenegro escreveu em uma carta a Clarice Lispector, na década de 1970, ao discorrer sobre o amor: “Estamos aprendendo a lição seguinte: amor é ter. Na miséria não está a salvação”. Ela faz referência ao “ter”, este verbo tão ligado às questões concretas, materiais e sólidas, como preenchimento afetivo, invertendo a lógica da posse. Amor implica colocar-se com inteireza diante do outro, sem brechas, mesmo que isso signifique ser forte o bastante para se mostrar inteiramente frágil.

Afinal, a quem é destinada essa “fábula inversa”?
Os afetos verdadeiros são tão raros que significam sempre mais do que têm consciência de dizer. Aqui conjugo, com delicadeza, o verbo silenciar.

FONTE: Correio Braziliense online - 12/12/2009
Coluna de CARLOS MARCELO - L2 - Livros & Leituras culturais.

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