sábado, 5 de dezembro de 2009

"Sexo Vegetal"

Em 'Sexo vegetal', o escritor Sérgio Medeiros revisita mitos


RIO - No princípio eram as árvores. E foram elas que expeliram, ou acolheram, os homens, segundo a gênese indígena. Este momento primeiro de contato do homem com a natureza é homenageado pelo escritor Sérgio Medeiros em Sexo vegetal M(Iluminuras, 96 páginas, R$ 29). Na obra, o autor passeia por textos que recriam tal cosmogonia, “um elogio aos começos”, como ele define. São mitos ameríndios, gregos, latinos, orientais e fábulas bíblicas que redesenham o encontro: seja no toco de madeira que vai na orelha de um xavante ou no carrapicho que insiste em vir na calça jeans, o potencial erótico da natureza é imenso, propõe Medeiros. “Mas faço isso com humor e nonsense”, garante Medeiros.

Você pesquisou muito para escrever o livro?
Na verdade, foi uma consequência de meus livros anteriores: Mais ou menos do que dois, Alongamento e Totem & sacrifício. Neles, pratiquei a literatura como posto de observação, ou seja, a literatura é o lugar de onde posso ver o mundo. Então são livros visuais, imagéticos. A linguagem do “como” (o símile, a comparação) é fundamental. Uma coisa é igual a outra coisa sempre, em todos os meus textos. É assim que consigo descrever o mundo, sentado ou em pé no meu posto de observação, seja verso ou poema em prosa. Então, de repente, percebi que a linguagem do “como” (usada por escritores que admiro muito, como José de Alencar, Clarice Lispector e João Cabral, entre outros) era um tipo de “sexo”. Nasceu então o sexo vegetal, ou minha intuição de um possível sexo vegetal, que posso definir, agora, provisoriamente, como uma maneira de fazer a língua do “como” alcançar novos horizontes (palavra que aprecio).

Por que você evitou o sexo animal? O tema também é seu objeto de pesquisa?
Quis começar com o sexo vegetal, porque, segundo os mitos ameríndios – penso no poema maia Popol Vuh, que eu mesmo traduzi para o português, com o auxílio do americanista Gordon Brotherston – as árvores surgiram antes dos homens. Pensei comigo mesmo que podia fazer uma glosa mítica, comentando começos – o instante em que as plantas acolhem (ou expelem) os homens que estão aparecendo no mundo. Meu livro é um livro que fala de começos, é um elogio do começo. Quando penso no começo, assumo outra posição na história do mundo e olho com olhos primitivos ou selvagens o capim, a árvore, a fruta etc. É como se momentaneamente eu retrocedesse ao instante da cosmogonia. Mas faço isso com humor, nonsense, não é o regresso místico ao instante inicial. É sempre um jogo, uma experiência cosmogônica possível ou viável nos dias de hoje e que está ao alcance de qualquer um. Daí a importância do cenário: junto a cada história, ou glosa mítica, vem um cenário, um mundo vegetal que ora exclui ora inclui o homem.

Qual seria uma representação contemporânea dos mitos ameríndios?
Para mim, a representação contemporânea da mitologia ameríndia é a obra de Lévi-Strauss, o grande recriador dos mitos das Américas. Sua obra História de lince, que cito no livro, é fundamental nesse sentido: reconta em suas páginas centenas de mitos, de forma sucinta e vibrante, relacionando vertiginosamente uns com os outros. Os antropólogos mais jovens têm também muito a dizer sobre os contatos possíveis e impossíveis entre humanos e inumanos. Citarei Philippe Descola e Eduardo Viveiros de Castro, dois especialistas em perspectivismo amazônico, a ciência dos xamãs. Outra referência é o conto “Tantalia”, do escritor argentino Macedonio Fernández, que descreve a relação difícil de um homem com um trevo. O trevo é um parceiro complexo, poderoso. Falo no livro que o trevo argentino é, ou poderá ser, também sádico. Para mim, isso sim é uma recriação atualíssima do sexo vegetal indígena: uma contigüidade intensa, não necessariamente uma cópula, um ato sexual consumado ou perverso. Encontro também muito sexo vegetal na música de John Cage, onde galhos e ramos se agitam, emitem sons, viram música, ao serem tocados pelo compositor ou por músicos profissionais.

Quais estudiosos dos mitos indígenas identificaram/registraram o sexo vegetal?
Ninguém o registrou tão bem quanto Lévi-Strauss. É o Ovídio das Américas. Descola e Viveiros de Castro também oferecem dados preciosos sobre o papel do inumano na vida afetiva dos indígenas. Mas não devemos ficar só na antropologia: Clarice Lispector e Maria Gabriela Llansol, a escritora portuguesa falecida recentemente, também entendiam do tema, e são profundamente indígenas mesmo não o sendo na aparência. O que elas dizem, um índio podia dizer. Manoel de Barros também tem grande noção do sexo vegetal, mas, no seu caso, a relação é mais explícita, direta, uma cópula de fato com as árvores, por exemplo. Pode ser impressionante e muito indígena, sem deixar de ser poético. Não é pornográfico, seguramente. O que imagino e descrevo é diferente: uma continuidade entre o passado mítico e o presente que anuncia uma cosmogonia humilde, uma ilusória (re)criação do mundo, não um gozo pessoal apenas. Manoel de Barros é mato-grossense, nasceu em Cuiabá; eu sou sul-mato-grossense, nasci em Bela Vista, fronteira com o Paraguai. Somos os dois do Centro-Oeste, e a gente do Centro-Oeste é muito dada a relacionamentos com o inumano, seja esta planta, pedra ou bicho. Ney Matogrosso, meu conterrâneo, encena nos seus shows e em pelo menos um dos seus filmes cenas desse tipo. Tetê Espíndola, para citar outra artista da voz, se especializou em reproduzir ou recriar o canto de pássaros. Nada disso surpreende, se lembrarmos que o Centro-Oeste é, a cima de tudo, a terra dos xavantes e dos bororos.

Há tensão sexual entre as plantas? As plantas sentem prazer?
Nunca imagino as plantas sozinhas, entregues a si mesmas. No meu livro as plantas existem, de repente surge o homem ou a mulher no meio delas. Então, a partir daí, há contato, conexão, ou rejeição, espanto, susto. As plantas, digamos, também têm rosto, para usar um conceito de Lévinas que aprecio. Mas o rosto das plantas, é claro, surgiu antes do rosto humano, então elas podem se olhar, se falar, se comunicar. Sei que as plantas proliferam, então deve haver sexo entre elas. Isso é o começo do mundo. Só que, no meu livro, o homem sempre surge inesperadamente no meio das plantas. Então o sexo vegetal, neste caso, para se efetivar, pressupõe um casal, composto de um inumano e um humano.

Por que o sexo vegetal, tal como o conhecemos, é visto como uma aberração?
O meu sexo vegetal é mítico e humorado, embora volta e meia possa cair no grotesco, mas não na pornografia nem na aberração. O meu livro tem até parábola infantil. Acho que muitas passagens são até líricas. O meu sexo vegetal seguramente não é nem quer ser esse outro sexo vegetal que entende a cópula ao pé da letra, transformando o inumano em substituto do humano. No meu sexo vegetal, o humano não é mais o umbigo do universo, como diria Llansol, e não pode mais sujeitar ou explorar o inumano. É claro que sempre poderá haver um humano perverso ou mesmo uma planta perversa à espreita, em toda cosmogonia. Qualquer coisa pode enlouquecer um ser humano. Borges falou disso no célebre conto “O Zahir”.

A certa altura, você faz um alerta: “As plantas não são inocentes”. Por quê?
As cosmogonias poéticas são possíveis. Ou seja, a qualquer momento podemos perder nosso lugar no universo e voltar às origens, ao seio das plantas. Elas podem fascinar. Elas podem olhar para nós e nos paralisar. Como já recomendou Viveiros de Castro, é preciso ter muita diplomacia nessa hora e sair de mansinho. Por isso eu disse que as plantas não são inocentes. Elas podem nos prender para sempre no começo do mundo. No meu livro, os começos são humildes, não levam a situações extremas. Mas, ao mesmo tempo, o livro todo estremece sob o peso dessa ameaça, a ameaça de ficar preso no começo. O narrador, quase sem querer, ou por instinto de sobrevivência, recorreu a certas estratégias para fugir do perigo. Por exemplo, o livro tem um prefácio, o começo de tudo. Mas esse prefácio parece ser o de outro livro e não daquele que se vai ler. (Isso só fica claro numa leitura retrospectiva.) À medida que vai avançando na leitura, o leitor percebe que o narrador não sabe exatamente em que parte do livro está, se no prefácio ou num capítulo avançado... Não sabe e não quer saber. As coisas ameaçam cair no caos. Estou plenamente convencido de que o prefácio não corresponde ao texto do livro e que isso salvou o livro, o fez avançar um pouco. O prefácio é um falso começo, uma tentativa de começo. Talvez todo o meu sexo vegetal seja isso: uma mera tentativa de (re)criar ou (re)começar. Ilusória mas inevitável, segundo a tese que defendo. Um voltar para trás para ir para a frente. Esse vai-e-vem (a mecânica do amor) é a única referência mais explicitamente erótica que o meu livro contém. Gostaria de acreditar nisso. O resto são toques e visões.
REPORTAGEM de Mariana Filgueiras, Jornal do Brasil

FONTE: Jornal do Brasil online - - 04/12/2009

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