André Gorz*
A relação educativa não é uma relação social e não é socializável. Ela só funciona se a criança, para a pessoa que o educa, é um ser incomparavelmente singular, amado por si mesmo, a ser revelado a si mesmo pelo amor como alguém tendo direito a sua singularidade: isto é, como individuo-sujeito. A “função” materna ou paterna (ou aquela da pessoa, irmão, tia, avô etc que adota a criança) não é socializável, pois não se trata de uma função, mas de uma relação de amor, que a sociedade olha sempre com suspeição ou com franca hostilidade: ela ameaça fazer da criança um insubmisso, educando-a a cuidar (Edu-care) e a apropriar-se de sua própria existência como sujeito autônomo, no lugar de lhe ensinar (como fazem a escola, o exército, o partido) o direito da sociedade sobre ele.
O amor não é um sentimento social, nem a educação é uma “função social”. O educador, o pedagogo, a instituição, a administração e com pais socializados demais, na medida mesmo que tem por vocação entregar a criança a si mesma, conduzindo-a à estima de si, em vez de lhe entregar de pronto à sociedade, inculcando-lhe a submissão às normas.
Como nota Laville, é a socialização, de fato, que “constitui um problema”, mas no sentido oposto àquele sugerido por ele: é o excesso, não a falta de socialização que obstaculiza a autonomia individual. Mais precisamente, o problema é a prioridade que os pais concedem á socialização pela escola, mais que à educação; ao bom desempenho escolar, mais que ao desenvolvimento sensorial e afetivo; à aquisição de “competências” sociais, mais que ao desenvolvimento das faculdades imaginativas e criativas, à capacidade de se responsabilizar por si mesma e aceder à estima de si, fora de rumos traçados de antemão. A socialização continuará a produzir indivíduos frustrados, inadaptados, mutilados, sem rumo, enquanto persistir em visar “a integração social pelo emprego”, a integração em uma “sociedade de trabalhadores” onde todas as atividades são consideradas “meios de ganhar a vida”. Como diz Hannah Arendt: “ Para haver uma sociedade de trabalhadores é preciso que todos os membros considerem sua atividade, qualquer que seja, como um meio de ganhar sua vida e de sua família”. La Condition Humaine, Calmann-Lévy, 1961, pp. 56-57.
Eis a oposição entre, de um lado, o pensamento político-filosófico (sempre de tendência axiomática) a respeito da boa sociedade e da vida boa e, de outro, o pensamento funcionalista. O que conta, para o primeiro, é o “trabalho pelo qual um indivíduo transforma-se em agente capaz de transformar sua situação no lugar de reproduzi-la por seus comportamentos” (A. Touraine, op.cit.p.429). O que conta, para o segundo, é formação de “indivíduos sociais” possuidores das competências sociais e dos comportamentos que os tornam aptos a preencher as funções ou papéis definidos pelo processo de trabalho social. Os partidários do pensamento político-filosófico interessam-se pelos movimento sociais è medida em que estes buscam apropriar-se dos espaços vagos em consequência da decomposição da sociedade e a abolir esta última em favor de uma outra. Os partidários do pensamento funcionalista interessam-se pelos meios institucionais de perpetuar a sociedade do trabalho, renovando-a, reformando-a e adaptando os indivíduos a novos tipos de empregos.
Os primeiros insistem que é preciso “preparar a população, já na escola, a viver períodos sem trabalho profissional, quando inúmeras outras atividades... voluntárias poderão desenvolver-se, entre os segundos, prevalece a preocupação em profissionalizar, “capitalizando” em relações sócias “competências” relacionais, transformando o emprego “o que há de mais especificamente humano”: “fazer entrar mesmo à base de fórceps as mais fundamentais relações humanas no tempo profissionalizado. Encontramos aqui, em outro nível, o debate lançado por Paolo Virno sobre este “por em trabalho” “aquilo que há de mais comum, isto é, o intelecto e a palavra”, “o supra-sumo da sujeição”. “Ninguém é mais depauperado que aquele que vê... seu poder de fala reduzido a um trabalho assalariado”, ou melhor: nada pode ser mais empobrecedor para uma cultura que ver os elos afetivos mais espontêneos entre as pessoas – a simpatia, a empatia, a compaixão, o cuidado, a comunicação etc. – “objetivados em estágios de formação e diplomas” e utilizados para satisfazer um empregador, ganhar um cliente: ao primeiro, “saber vender-se” e, ao segundo, saber vender.
FONTE: Excerto do Livro: GORZ, André. Misérias do Presente, Riqueza do Possível. Trad. Ana Montoia. São Paulo: Annablume, 2004, pp.81-82.
*ANDRÉ GORZ. Nascido em Viena em 1923. Viveu na França. Suicidou-se ...Intelectual reconhecido internacionalmente. Autor de 16 livros, dos quais seis foram ou estão sendo traduzidos para o português.
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