Michel Maffesoli* em a Sombra de Dionisio.
Os trabalhos sobre a camaradagem (Coornaert) conduzem a conclusões similares: o vinho é a garantia do segredo que funda e fortalece a existência de turmas de camaradas. Não há dúvida de que, nas festas, o vinho sempre serve de estímulo para unir os companheiros; mas do mesmo modo, na estrita moral da turma, a garrafa permite, depois do labor cotidiano, reproduzir a força do trabalho em seu mais nobre sentido. A cayenne, ponto de encontro em que se vira a garrafa “regularmente”, é um lugar da vida. Também ai o vinho é um sacramento de união: ele sela o segredo em que se assenta toda camaradagem, ele é a garantia da escolha que assegura a manutenção do “corpo”.
Sabemos, aliás, que esse uso é bastante difundido, seja em ocasiões excepcionais, seja na trivialidade do cotidiano. A comunidade se reforça e se consolida pela memória do rito do vinho. Fernand Braudel observa, com toda a razão, que mesmo na respeitável comunidade científica o uso do vinho, dos comes e bebes, era de praxe, quando se festejava esse ou aquele acontecimento acadêmico. Tal observação, que suscita certa nostalgia, não é puramente anedótica: ela sublinha, simbolicamente, que a liberdade de espírito se vive coletivamente. A partilha do vinho nos lembra essa evidência. De resto, é preciso não esquecer, na mesma ordem de ideias, que o cabaré é potencialmente um lugar de sedição. Foi dessas casas de diversão que se propagou, no século XVII, o espírito de revolta, em sua dupla face de ateísmo e epicurismo. Um trabalho erudito acerca dos “lazeres e festas na França do século XVII” mostra o cabaré como uma espécie de trincheira em que se acotovelavam aristocratas, intelectuais, malandros, libertinos, etc., e acrescenta “que M. de Montmaur, professor de grego no Collège de France, aí exibe sua fama de glutão. Em resumo, a taverna é, graças ao vinho que ali se consome, o lugar por excelência da socialidade*. As classes e castas se misturam; a felicidade se anuncia e a resistência à imposição de poderes se organiza. Mesmo pontual, flexível e efêmera, essa resistência deixa marcas, tornando-se constitutiva da memória coletiva que permite a organicidade societal*. Segundo uma significativa expressão, “ a taverna é o lugar eterno da beberronia e da comilança” (R. Courtine) e, assim, não é a toa que, em suas diversas modulações, a ordem vigente sempre manifestou sua desconfiança vigilante em relação a esse lugar suspeito.
(...) podemos indicar que o vinho permanece, em nossas tradições, o meio de se preservar e conserva o corpo coletivo. Outros dirão que o vinho é uma forma de se iludir, de se desregrar, de esquecer, o que importa?! Sem apreciação normativa ou moralizante, é preciso reconhecer que ele preside, na maior parte do tempo, o que Durkheim chama de “a efervescência”, a qual, como se sabe, está na base de toda estruturação social. Ao mesmo tempo – e isso indica, a contrario, sua potência – a ordem instituída se protege constantemente dele. Ao editar um conjunto de leis contra o alcoolismo (apoiada por campanhas dos meios de comunicação ou o endosso dos “homens de bem” de direita ou esquerda), a tecnoestrutura contemporânea renova, na melhor tradição higienista, os temores dos poderes públicos que, no século XVI, se acreditavam obrigados a agir com rigor para coibir a bebedeira das massas, que se dirigiam às “portas de entrada” das cidades para consumir vinho coletivamente a um baixo custo (cf. Braudel, op.cit. p. 202). Se nos referirmos ao mito, veremos que essa mesma angústia se encontra em Tebas, com o rei Penteu, que (como seu nome não revela) era um sábio administrador, procurando sempre proteger sua cidade contra a irrupção da violência dionísica. Em todos os casos, trata-se de lutar contra um querer-viver algo desenfreado, que escapa à injunções do “dever-ser”, à lógica mortífera de uma ordem monovalente.
(...) o vinho e a libertinagem caminham juntos no processo de agregação societal.
*É professor de Sociologia na Sorbonne Paris V, diretor do Centro d´Etudes sur l´Actuel et le Quotidien (CEAQ) e do Centre de Recherche sur l´Imaginaire (CRI).
VOCABULÁRIO:
SOCIALIDADE é ela uma expressão cotidiana e tangível da solidariedade de base, vale dizer, do societal em ato.
SOCIETAL – Quando desejo sublinhar uma característica essencial do “ser-conjunto” – característica essa que supera a simples associação racional –, utilizo o termo “SOCIETAL”. Embora um tanto estranha à língua, esta expressão se faz necessária para, de imediato, distinguir-se de um social já gasto e (talvez) em vias de se extinguir. O SOCIETAL seria, portanto, outra maneira de dizer o “holismo”.
FONTE: Excerto do Livro: MAFFESOLI, Michel. A sombra de Dionisio – contribuição a uma sociologia da orgia. Trad. Rogério de Almeida, 2ªed. São Paulo, Zouk, 2005, pp.125-127.
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