quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Psiquiatria vive crise por falta de provas científicas, diz Nobel

O neurobiólogo Eric Kandel, que viaja ao Rio para participar
do Congresso Brasileiro de Psiquiatria
Samuel Kubani -29.dez.2006/France Presse


A psiquiatria está em crise porque falta comprovação biológica para seus conceitos. Essa é a opinião do neurobiólogo Eric Kandel, 81, ganhador do Prêmio Nobel de Medicina de 2000.
O cientista da Universidade Columbia, de Nova York, premiado por seus estudos com memória, desembarca nesta semana no Rio de Janeiro para participar do Congresso Brasileiro de Psiquiatria.
Em entrevista à Folha, Kandel condenou o uso de remédios como a ritalina (droga para tratar deficit de atenção) para melhorar a concentração de pessoas saudáveis.
Ele falou também sobre a validade da psicanálise, que pode cobrir lacunas da psiquiatria, caso adote padrões científicos mais rígidos. O pesquisador comentou também sobre sua nova invenção: um camundongo "esquizofrênico" para testar medicamentos.  

*
Folha - Psiquiatras estão debatendo mudanças no manual de diagnósticos de transtornos mentais. Muitos acham que o livro não pode tentar ser muito objetivo. O que o sr. acha?
Eric Kandel - A preocupação com a objetividade foi introduzida há uns 20 anos quando houve uma tentativa de validar os critérios do manual para descrever transtornos. Isso foi extremamente importante para que diferentes psiquiatras pudessem dar o mesmo diagnóstico a um mesmo paciente.
O que é triste é que não houve muitos avanços desde então. Uma das razões para isso é que os psiquiatras não têm os chamados "marcadores biológicos" à disposição. Se você diagnostica diabetes ou hipertensão, pode usar medições objetivas, independentes. Não precisa se basear apenas naquilo que o paciente lhe conta. Nós, psiquiatras, ainda temos que recorrer à história do paciente.
O único grande avanço foi o trabalho de Helen Mayberg sobre depressão e a área chamada 25 do córtex cerebral. Ela descobriu que pessoas deprimidas tendem a ter hiperatividade nesta área. Quando os pacientes são tratados e os sintomas revertem, isso pode ser observado na área 25. Em pacientes para os quais drogas ou psicoterapia não haviam funcionado, ela descobriu que a estimulação cerebral [com sinais elétricos] poderia ter sucesso.
Mas, à exceção do trabalho de Mayberg, não temos outros exemplos.
Precisamos desesperadamente de bons marcadores biológicos. Sem isso, podemos publicar quantas edições quisermos do manual, que não chegaremos a lugar nenhum.

Algumas pesquisas pioneiras sugerem que vítimas de estresse pós-traumático poderiam se beneficiar de drogas que apaguem suas memórias ruins. Isso já foi feito em ratos. O que o sr. acha disso?
É assustador. Não gosto nem um pouco dessa idéia. Eu gosto da idéia de drogas que estimulem a memória. Se você tem problemas de memória, não há razões para não tomar algo para melhorar. Livrar-se de memórias é muito perigoso. Eu lido melhor com a idéia de que as pessoas tentem se acostumar com suas memórias. Há varios tipos de tratamento para essa dessensibilização. Acho OK tentarem se livrar da ansiedade associada à memória.
Acho aceitável também, que, em uma guerra, soldados tomem drogas betabloqueadoras para que não tenham uma reação excessivamente emocional com a experiência. Mas aniquilar memórias é uma coisa ruim. Você é quem você é por causa das memórias. O caráter das pessoas não deve ser submetido a cirurgias farmacológicas.

Houve progresso no entendimento dos mecanismos biológicos de algum outro transtorno psicológico?
Acho que houve no próprio caso do transtorno do estresse pós-traumático. Nós sabemos alguma coisa sobre a atividade da amígdala cerebral, que fica hiperativa nessas pessoas. Algumas pessoas estão desenvolvendo interessantes tratamentos de dessensibilização em conjunto com o uso de fármacos. É possível ver algum progresso nisso no futuro.
Isso é importante hoje, pois vivemos num momento em que há mais incidentes e mais vítimas entre soldados aqui nos EUA do que havia na Segunda Guerra Mundial. Por que o numero aumenta? Uma das razões pode ser a maior facilidade de se fazer diagnósticos, mas outra coisa é que, naquela época, havia um programa americano que enviava psiquiatras para servir nos campos de batalha. E eles estavam à disposição dos soldados quando estes precisavam. Isso pode ter feito diferença.

O sr. vei aqui para apresentar um camundongo geneticamente modificado que seu grupo criou para o estudo da esquizofrenia. A esquizofrenia afeta capacidades mentais humanas. Como é possível usar um camundongo para estudá-la?
A esquizofrenia tem três classes de sintomas. Há os "positivos" ilusões, alucinações e loucura, os "negativos" _reclusão, isolamento social e falta de motivação --e os "cognitivos"-- a dificuldade de organizar as ideias e trabalhar. É difícil criar um modelo para estudar os sintomas positivos em cobaias, mas podemos modelar os cognitivos e negativos.
Criamos um camundongo cujo corpo estriado [estrutura no núcleo do cérebro] produz em excesso uma proteína que os neurônios usam para captar o neurotransmissor dopamina. Essa é uma lesão genética que ocorre em parte dos pacientes com esquizofrenia e, funcionalmente, leva a uma característica compartilhada pela maioria dos esquizofrênicos. Nós obtivemos então camundongos que claramente têm problemas de memória de curto prazo e em funções cognitivas. Os mesmos roedores têm dificuldade de interação social e baixa motivação.

A falta motivação não é um sintoma mais característico da depressão do que da esquizofrenia?
É um sintoma compartilhado pelas duas doenças, mas é um aspecto muito importante da esquizofrenia. Nós encontramos um medicamento que supera essa deficiência e a restaura ao normal. Achamos que isso poderá ser útil para tratamentos de depressão também.

Quão longe essa droga está de chegar ao mercado?
Nós fizemos só os testes em camundongos. Estamos agora conversando com empresas farmacêuticas em busca de alguma que esteja interessada em experimentá-la em pessoas. Ainda é uma fase bem inicial.

O que o sr. acha de usar drogas, como a ritalina (receitada para deficit de atenção) para "turbinar" a inteligência, aumentando a concentração?
Não acho que seja boa ideia para pessoas saudáveis. Essas drogas devem ser prescritas para pessoas com problemas cognitivos. Não devem nunca ser vendidas sem receita. Não são vitaminas.

O sr. vem falar no Brasil, onde a psicanálise é relativamente bem aceita. Nos EUA, não é assim. Que papel o sr. vê para as ideias de Freud hoje?
Não vejo problema em ler Freud da mesma forma que lemos Nietzche, Dostoiévski ou Shakespeare --grandes pensadores que escreveram sobre a mente humana. Mas se você quer que a psicanálise seja uma terapia eficaz, é preciso ter estudos que mostrem resultado. É necessário explicar o que ocorre no cérebro. Isso seria e trabalhoso, mas é precisa ser feito.
O maior problema não é com Freud, mas com aqueles que o sucederam. Eles não desenvolveram uma tradição científica na psicanálise. O treinamento para psicanálise deveria mudar, de forma que uma parte das pessoas formadas se dedicasse exclusivamente à pesquisa.

Como será possível provar a eficácia da psicanálise em termos objetivos? Seria como comparar a eficácia de uma droga a um placebo?
Você conhece Aaron Beck? Ele era um psiquiatra da Universidade da Pensilvânia, uma pessoa incrível, que já estava interessado em testar as idéias de Freud 40 anos atrás. Freud afirmava que pessoas deprimidas têm uma grande carga de ira que se volta contra elas mesmas, de maneira inconsciente.
Ele ouvia então os relatos de sonhos dos pacientes --pois os sonhos são "a estrada de ouro" para se acessar o inconsciente-- e descobriu que esses pacientes não estavam mais irados que qualquer outra pessoa. Essas pessoas, porém, tinham uma distinção característica: elas se consideravam "perdedoras" na vida. Achavam que tinham falhado no casamento e no trabalho, que não eram bons pais etc.
Quando Beck tentou olhar para o que estava acontecendo, ele viu que muitos deles na verdade estavam se saindo bastante bem em suas vidas. Beck, então, apontou a discrepância entre como esses pacientes achavam que estavam se saindo e como eles realmente funcionavam na vida. Ele os ajudou a mudar a maneira de pensar e de funcionar, e isso foi possível com umas 20 sessões de terapia.
Ele escreveu então um livro com sua "receita", e outras pessoas seguiram seu método, com sucesso.
Depois disso Beck criou grupos para comparação: um grupo de pessoas que não recebiam nada além de medicamentos antidepressivos e um de pessoas que passaram por seu método, a terapia cognitivo-comportamental. Depois, comparou o desempenho de cada um com placebo.
Ele viu que em casos de depressão suave ou moderada, esse tipo de psicoterapia era tão bom quanto inibidores seletivos de recaptação de serotonina [principal classe de drogas antidepressivas]. Em casos de depressão severos a diferença não era tanta, mas o efeito da psicoterapia combinado com os medicamentos era melhor que o das pílulas sozinhas.
Isso foi um marco sobre como estudos podem avaliar os resultados da psicoterapia. É por isso hoje que o sistema de saúde britânico reembolsa gastos de pacientes de terapia cognitivo-comportamental, mas não os de outros tipos de psicoterapia.
É isso que precisa ser feito com a psicanálise. É preciso ter um grupo de controle, um grupo experimental, um placebo. É preciso comparar a psicanálise à terapia cognitivo comportamental.
Já existem algumas tentativas de se fazer isso hoje, e elas parecem encorajadoras. É possível imaginar que alguns pacientes precisem de uma abordagem que os ajude a olhar melhor para si próprios, algo que a terapia cognitivo-comportamental não faz. Ela é um tipo de terapia que não discute com você como sua mãe e seu pai te tratavam. Ela lida com o aqui e agora.
Em algumas circunstâncias, ela pode funcionar bem, mas em outras talvez seja preciso explorar melhor o passado da pessoa, onde a psicanálise ajudaria. É preciso descobrir quais são essas circunstâncias.

Não existe hoje uma aceitação maior de que a mente descrita por Freud possui estruturas correlatas no cérebro, como o id, o ego e o superego?
Sim. O córtex pré-frontal está muito relacionado à moralidade e ao julgamento de valores, por exemplo. Uma lesão nessa região do cérebro pode tornar uma pessoa amoral, um psicopata.
Mas acima disso, a ideia geral de Freud sobre processos mentais inconscientes é muito importante para nossas vidas. Boa parte de nossa atividade mental é inconsciente. Isso acabou se mostrando uma verdade universal.

Por que os EUA não se encorajaram com as idéias de Freud?
Há muitas razões. A principal delas é que psicanálise é absurdamente cara e leva muito tempo. Hoje, todos nós temos menos tempo do que dispúnhamos duas décadas atrás. Isso é verdade para acadêmicos, para homens de negócios e para pessoas que poderiam pagar pela psicanálise.
Um outro problema é que, nos círculos médicos, a psicanálise havia prometido algo que não poderia cumprir.
Greta Bibring, uma charmosa vienense discípula de Freud, foi chefe do departamento de psiquiatria na Escola Médica de Harvard entre as décadas de 1950 e 1960. Ela era muito admirada lá e convenceu as pessoas de que a psicanálise iria solucionar todos os problemas que a medicina não conseguia resolver naqueles dias.
Isso foi antes de existirem tratamentos eficientes para hipertensão, por exemplo, e outros tipos de problema que só vieram a ser mais bem compreendidas depois. A promessa de Bibring é que várias dessas doenças eram psicossomáticas e poderiam ser resolvidas com psicanálise.
Quando ficou claro que nenhuma dessas doenças reagia à psicanálise, houve uma grande decepção, e isso desencorajou muitos médicos acadêmicos que antes apoiavam Freud. Foi uma grande perda.
Depois disso veio a pressão do dinheiro, a pressão do tempo, vieram as psicoterapias de curto prazo e as vieram as drogas psiquiátricas _Prozac e companhia limitada. As pessoas começaram buscar a saúde mental de outras maneiras.

O sr. passou também passou a infância em Viena, quando Freud ainda vivia lá, e também teve de fugir do nazismo. Isso o influenciou em sua maior aceitação à psicanálise?
Isso teve efeitos positivos e negativos em mim. De um lado, parte de minha vida era superar o transtorno do estresse pós-traumático, porque foi uma experiência terrível. Mas eu fui influenciado pela cultura de Viena, tinha muitos amigos cujos pais eram psicanalistas, e tinha interesse nisso. Só desisti da psicanálise quando me apaixonei pela neurobiologia.
Eu deixei Viena aos nove anos com meu irmão de catorze. Nós cruzamos o Atlântico depois, cada um de nós sozinho. Talvez eu estivesse aterrorizado, mas não me lembro muito bem disso. Meus pais vieram para cá alguns meses depois. Houve um estranhamento. Eu era um forasteiro aqui nos EUA, usava roupas europeias não falava inglês, não tinha dinheiro...
Mas acho que a origem do meu interesse em transtorno pós-traumático é diferente. Eu me interessava por psicanálise e me interessei pelos mecanismos de armazenamento de memória porque é um assunto central da psicanálise.
Acabo de finalizar meu novo livro "The Age of Insight", que tenta combinar neurociência e arte, do século 19 até aqui. Está previsto para sair em março. É uma tentativa minha de passar isso a limpo.

Leia um trecho do Livro: O câncer.

A Célula Cancerosa


Livro define o câncer e explica termos como tumor e metástase

A formação de uma célula cancerosa decorre da desregulação desses mecanismos de controle, seja por desobediência interna da célula doente aos sinais externos de freio, seja por interpretação errônea daqueles sinais. Isso leva ao aparecimento de uma célula que se prolifera de forma anárquica, adquirindo a capacidade de se implantar em tecido vizinho e se desenvolver em qualquer parte do organismo. Outra propriedade fundamental da célula cancerosa é a de dar à luz duas células-filhas, também cancerosas, transmitindo assim as alterações genéticas graves para uma multidão de células doentes.
Estudos científicos têm demonstrado que o tumor maligno deriva de uma única célula-mãe, que se divide sem parar. O câncer, portanto, deriva de anomalias genéticas adquiridas ao longo do desenvolvimento tecidual e ocasionadas por fatores cancerígenos do ambiente - químicos, físicos ou virais. São esses fatores que alteram o código genético de uma célula normal, levando o DNA a iniciar ciclos de divisão celular descontrolada, com produção contínua de novas células cancerosas; estas, por sua vez, se dividem e produzem outras, num ciclo de proliferação sem fim. Assim se formam os tumores. É como se os tijolos numa parede da sala começassem a produzir, sem parar, centenas de novos tijolos: nesse local seria facilmente visível um "monte", que iria se elevando da parede e ocupando um espaço vital da sala, alterando sua função.
Recentemente, a atenção dos cientistas tem se focalizado no estudo da oncogênese (origem do câncer), tentando desvendar os mecanismos básicos do aparecimento e desenvolvimento dos tumores. Conhecemos hoje várias alterações do DNA que levam a célula normal a perder o controle e proliferar sem parar. Duas categorias de gene (unidades do DNA, que portam o código genético) têm relação com o aparecimento das células cancerosas:
Os oncogenes (genes que dão origem ao câncer), que participam da iniciação da proliferação celular, induzida pelos fatores de crescimento. Esses genes, quando afetados por mutações e alterações funcionais importantes, ficam ativos mesmo na ausência de fatores exógenos reguladores da divisão celular. E a modificação de sua função tem como conseqüência, por um lado, causar uma proliferação celular anárquica e, por outro, fazer escapar a célula ao controle normal da divisão celular.
Os genes supressores, ou antioncogenes, que permitem à célula detectar erros de proliferação e cuja função é interromper a divisão celular anormal. Mutações (modificações) de um ou dos dois tipos de gene são necessárias para o aparecimento do câncer. Elas conduzem à perda do equilíbrio sutil entre os fatores de controle positivo e negativo da divisão celular.
Em geral, o câncer leva vários anos para se desenvolver. Ele requer múltiplos eventos genéticos independentes, antes de escapar aos complexos mecanismos atuantes que mantêm o crescimento normal de uma célula. Esse fenômeno se chama iniciação. Uma proliferação descontrolada aumenta a probabilidade de aparecimento de novas mutações (de outros oncogenes ou genes supressores de tumor), levando a célula a produzir mais tumores. As mutações podem também ser responsáveis pelas novas características da célula cancerosa:
disseminar-se dentro do organismo;
escapar ao sistema imunológico; e  favorecer o crescimento tumoral por formação de novos vasos sanguíneos, que trazem nutrientes indispensáveis à vida celular.
Todos esses eventos moleculares que atingem o DNA são acontecimentos raros. Por esse motivo, a maioria dos tumores aparece após os 50 anos de idade, tanto em homens quanto em mulheres, pois é preciso ter vivido tempo suficiente para que o acaso produza uma combinação de eventos específica numa célula qualquer, provocando o câncer.

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"O Câncer"
Autor: Riad Naim Younes
Editora: Publifolha
Páginas: 96
Quanto: R$ 16,06 (preço promocional*)
Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha -------------------------------
Reportagem por RAFAEL GARCIA DE WASHINGTON
Fonte: Folha on line, 02/11/2011

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