Rodrigo Petrônio*
Ser contemporâneo consiste
basicamente em três atitudes. Ter olhos para perceber a beleza das
estrelas extintas do passado. Ter olhos para a escuridão futura das
luzes do presente que nos cercam e, às vezes, parecem ilusoriamente
predestinadas a durar. E ter olhos para a potência de luz adormecida
no
âmago da escuridão presente.
O conceito de imitação é um dos mais poderosos instrumentos da
criação artística desde a Antiguidade. Diferentemente do que se imagina,
desde Aristóteles a mimese não se refere apenas a uma imitação da
realidade. Ela engloba algo que é decisivo para compreendermos toda a
arte da humanidade: a imitação de modelos. A acepção corrente de mimese
como imitação da realidade acabou ocultando esse seu potente aspecto.
Minimizou a força da imitação, entendida também como imitação de autores
dignos de ser imitados. E, por isso mesmo, autores-modelos.
Mas a imitação não existe sozinha. É preciso que esteja sempre
articulada ao seu par natural: a emulação. Imitar servilmente obras e
artistas é uma ocupação de ociosos e nefelibatas. Os mestres do passado
foram grandes por conseguir incorporar obras alheias, iluminando
justamente os pontos que os autores-modelos não tinham conseguido
enxergar. Uma obra gera outra. Ao infinito.
As mudanças são pequenas. Mas o efeito é monumental. Em outras
palavras, a emulação é uma rivalização produtiva. Uma imitação ativa.
Imitação e emulação, "imitatio" e "aemulatio" foram a essência de todos
os sistemas de representação desde a Antiguidade até o século XVII.
Temas, motivos, técnicas, cenas, figuras, imagens, conceitos,
personagens, versos, passagens, mitos, fábulas. Tudo devidamente
surrupiado nos jardins alheios. Mas é preciso imitar esses
lugares-comuns com o intuito de superar quem os produziu. Apenas a
emulação potencializa a mimese. Confere autoria a essa cadeia imitativa
sem começo nem fim.
A obra-prima não existe. Ela é apenas a obra primeira. Ponto de
partida ideal de todos os criadores. Modelo dos modelos. Original
perdido para sempre. Inacessível. Parodiando Jorge Luis Borges, todo
escritor seria um copista anônimo de Deus. Deus, o único autor. Se ele é
o Autor, ninguém mais o é. Se Deus não existe, todo autor é um Ninguém.
Todo artista é um Ulisses disfarçado de Ninguém para escapar dos
Ciclopes que os cercam.
Na modernidade esse sentido de mimese, baseada em uma
imitação-emulação de modelos, transforma-se radicalmente. Deixa de ser a
imitação de obras-modelos. Torna-se uma pesquisa cujo objetivo é
ressaltar aspectos inesperados de realidades empiricamente dadas. O
artista abandona o posto de reles imitador e passa a ser aquele que
descobre relações inusitadas no mundo.
A arte é exonerada da atividade imitativa. Assume a lógica da
descoberta científica. Torna-se a reveladora heurística de novas
combinações e ordens de realidades. É o declínio do artesão e de sua
velha maquinaria mimética movida a manivelas. É a ascensão do gênio
original. Um expert em satisfazer os investimentos libidinais do público
consumidor. Um xamã da economia simbólica do desejo. Um papa das
commodities da beleza. Um sacerdote que ritualiza aos olhos do mundo a
autoconstrução da sua imagem. Especular e espetacularmente.
O impacto dessa translação é enorme. E nos deixa uma dúvida: o que
foi feito da velha tradição de imitação-emulação de modelos? Em "Por uma
Poética da Emulação", nova obra de João Cezar de Castro Rocha, um dos
maiores teóricos e críticos brasileiros em atividade, temos uma
reconstrução do princípio imitativo-emulativo a partir de ninguém mais
ninguém menos do que Machado de Assis. Muito? Pois há mais. Castro Rocha
parte do Bruxo do Cosme Velho para sugerir uma nova teoria geral da
abordagem literária. E o faz resgatando justamente o binômio
imitação-emulação dos antigos sistemas de artes e revendo sua
pertinência justamente a partir do século XIX, ou seja, a partir do seu
declínio.
Como se sabe, a passagem do primeiro Machado para o Machado maduro
sempre foi e continua sendo um enigma. O que teria feito o medíocre
autor de "Helena" se transformar em um monstro da literatura universal?
Como um jovem adulador provinciano veio a se tornar um dos maiores
escritores de todos os tempos? O que teria ocorrido em 1881 para que o
romancista tirasse do prelo "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e não mais
os suspiros açucarados de "Iaiá Garcia"? Rios de tinta correram para
explicar essa característica "twice born" (nascido de novo) do escritor
carioca.
Na atividade de Machado como crítico de literatura e teatro, um
artigo se destaca especialmente: a sua invectiva ferina contra "O Primo
Basílio", de Eça de Queiroz. E se destaca por dois motivos. Primeiro: o
tom ácido, distinto das sempre ponderadas análises de Machadinho.
Segundo: a precariedade argumentativa. Em resumo, trata-se de um dos
artigos mais ácidos e, ao mesmo tempo, um dos piores ensaios críticos
assinados pelo escritor. Contém marcas psicológicas claras de
ressentimento. E a defesa de um conservadorismo artístico indigno do
futuro criador de "Dom Casmurro".
Qual a tese fascinante de Castro Rocha? A querela Machado-Eça traz em
si os elementos centrais da conversão machadiana em um gênio da
literatura. Por quê? Como Dante se vira em uma selva escura, Machado se
depara, no meio do caminho de sua vida, com o espírito libérrimo do
jovem Eça produzindo tudo o que ele, Machado, nem sequer sonhara
realizar, senão de modo canhestro. Em um sentido bem pouco idealista,
seu gênio não teria nascido de uma inspiração divina. Surgira da pura
força da inveja e seu correlato técnico: as entranhas da emulação
mimética.
Mas como superar Eça pelas vias do realismo? Eça talvez tenha sido o
único em língua portuguesa que conseguiu imitar e emular "Madame
Bovary", o grande romance realista de traição. O colapso produzido por
Eça em Machado gera uma reinvenção do sentido mesmo da literatura.
Paradoxalmente, o efeito-Eça leva Machado a reativar o velho recurso
retórico da imitação-emulação de modelos. Mas com um deslocamento que
muda tudo. Machado deixa de imitar modelos próximos, em termos temporais
e espaciais. Passa a imitar-emular todo o acervo transistórico da
literatura universal.
O leitor cuidadoso deve intuir a que estou me referindo. O
defunto-autor Brás Cubas não é apenas uma imitação de Luciano de
Samosata (século 2º d.C.), autor da sátira menipeia, criada por Menipo
de Gadara (século 3º a.C.) e desenvolvida ao longo de séculos por gregos
e latinos. Ele é um recurso metaficcional poderoso do qual Machado se
vale para imitar-emular a "Bíblia", Sterne, Shakespeare, De Maistre, La
Rochefoucauld, Pascal, La Bruyère, Epicuro, Swift, Fielding, Dante,
Lucano, Vauvenargues.
Uma lista imensa de referências transistóricas desfila sob nossos
olhos, organizada pela alucinação omnicompreensiva do narrador morto. Ou
seja: da eternidade. Esse movimento de leituras e releituras
imitativas-emulativas de clássicos passa a marcar toda produção ulterior
de Machado, passando por "Dom Casmurro", "Quincas Borba" e pela
extraordinária revisão de técnicas narrativas de "Memorial de Aires" e
de "Esaú e Jacó".
Aliada a essa análise, o estudo de Castro Rocha lança uma hipótese
ainda mais ousada. A poética da emulação teria como desdobramento
natural algo que a maior parte dos artistas modernos e quase toda a
crítica de arte exorciza como se exorciza o demônio: o anacronismo
deliberado. Ao reativar o velho sistema imitativo-emulativo da
Antiguidade, Machado teria esvaziado o mito moderno da originalidade.
Mas o esvaziou de modo extremamente paradoxal: lançando luzes sobre a
originalidade da cópia, sobre a transgressão da tradição, sobre a
exceção da regra. Em outras palavras: transformando a imitação-emulação
em um dos alicerces de obras rigorosamente modernas.
A partir desse golpe de mestre, ao emular Eça, Machado consegue
realizar o seu necessário parricídio simbólico. Ato contínuo, desloca o
eixo valorativo da arte. Começa a minimizar o princípio da
imitação-realidade sobre o qual se fundamentava grande parte da
literatura e da arte, desde o século XVII, sobretudo o realismo. Reata o
elo perdido com as doutrinas da imitação-modelo.
Esse deslocamento de Machado é poderoso. Não relativiza apenas as
técnicas e sentidos da literatura de seu tempo. Abre novas
reconfigurações de sentidos artísticos, anteriores e ulteriores.
Igualmente poderoso é o deslocamento hermenêutico de Castro Rocha. Ao
superar o conceito de autoria pelo de autor-matriz, oferece-nos uma
relativização do pressuposto mesmo de categorias centrais da produção
simbólica moderna, tais como autoria, cópia, original.
Mais do que um estudo de caso, o triângulo
imitação-emulação-anacronismo é uma revisão radical de algumas pedras de
toque da atividade crítica. Além disso, oferece-nos uma das mais finas
lentes de leitura dos impasses da modernidade, sugerindo-nos caminhos
para uma compreensão extremamente satisfatória da dinâmica entre arte
contemporânea, tradição e pós-modernidade.
Como diria Giorgio Agamben, as estrelas extintas ainda brilham. Por
isso, ser contemporâneo não é ser atual. Ser contemporâneo consiste
basicamente em três atitudes. Ter olhos para perceber a beleza das
estrelas extintas do passado. Ter olhos para a escuridão futura das
luzes do presente que nos cercam e, às vezes, parecem ilusoriamente
predestinadas a durar. E ter olhos para a potência de luz adormecida no
âmago da escuridão presente.
Ao me tornar contemporâneo de toda a tradição humana, não me esquivo
da miséria que as sínteses concretas da história depositam todos os dias
sobre meus ombros reais que suportam o mundo. Ao contrário, ao me
tornar anacrônico em relação ao meu tempo, liberto-me da circularidade
tautológica dos critérios artísticos que cada época cria para si mesma,
como se fossem absolutos.
Agir e pensar assim é agir e pensar dialeticamente, na acepção mais
profunda e radical dessa atividade. Nesses termos, o jovem Machado se
transformou no Machado que amamos. E é nesse sentido que o Machado
anacrônico, o Machado mimético, o Machado original e o Machado eterno
são rigorosamente o mesmo autor. Irrepetível.
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* Rodrigo Petronio é escritor, professor da Casa do Saber e do
curso de cinema da Faap. Desenvolve doutorado na interface entre
literatura e filosofia. Autor dos livros "Venho de um País Selvagem"
(Topbooks), "Pedra de Luz" (A Girafa), entre outros.
FONTE: Valor Econômico on line, 11/10/2013
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