sábado, 26 de outubro de 2013

Amigos de Kazantzákis

Amigos de Kazantzákis
  O escritor grego Níkos Kazantzákis foi um dos grandes romancistas do século 20,
 autor das obras ‘Testamento a El Greco’
 e ‘A vida e as proezas de Aléxis Zorbás’.
 (foto: Μουσείο N. Καζαντζάκη/ Kazantzakis Museum – CC BY 3.0)

Tradução fiel para o português e reedição do livro ‘Testamento a El Greco’, do grande romancista grego do século 20, serão feitas graças à arrecadação de fundos em 
site de financiamento coletivo.
 
Por: Isadora Vilardo

A era digital permite tanto o contato com as mais avançadas tecnologias quanto a reanimação de antigos desejos. Essa aparente contradição deu ao romance Testamento a El Greco, do grego Níkos Kazantzákis (1883-1957), a chance de ganhar uma tradução mais fiel para o português e nova edição no Brasil: os recursos para o relançamento vieram de uma operação de crowdfunding, realizada por um sítio na internet especializado em doações. Todos os custos da reedição do livro no país serão bancados por futuros compradores e outros interessados.

Crowdfunding é o financiamento coletivo de um projeto, seja ele filantrópico, cultural, político ou outro. Existem alguns sítios especializados nessa atividade, e volta e meia alguma campanha de arrecadação desperta grande interesse. Foi o caso do livro de Kazantzákis, conhecido ainda pelo romance A vida e as proezas de Aléxis Zorbás (1946), que deu origem ao filme Zorba, o grego (1964). A iniciativa da editora Cassará atraiu, no Brasil, muitos apaixonados dispostos a financiar o relançamento, e a arrecadação já foi concluída.

O livro foi originalmente traduzido por 
Clarice Lispector em 1975 e se tornou uma 
das obras de maior
 influência na vida de Hilda Hilst
 
De onde surgiu tanto interesse por esse livro? Uma possível resposta, além do fato de ter sido escrito por um dos grandes romancistas do século 20, autor de A última tentação de Cristo (1951) e outros títulos, está nas personalidades que marcam sua história no Brasil: foi originalmente traduzido por Clarice Lispector (1920-1977) em 1975 e se tornou uma das obras de maior influência na vida de Hilda Hilst (1930-2004).

A ideia de republicar Testamento a El Greco com nova tradução surgiu quando a editora Bárbara Cassará conheceu um grupo de estudiosos e interessados na cultura helênica. “Publicamos uma tese brasileira sobre Kazantzákis e percebemos, pelo público, que as pessoas não gostam simplesmente desse autor – são apaixonadas”, diz ela.

A editora recebeu também a notícia de que já existia uma tradução do livro, feita a partir do original grego, e decidiram levar adiante a republicação. Mais tarde, mesmo não se confirmando a possibilidade de usar a tradução pronta, o projeto foi mantido com a participação de outra tradutora, Lucília Soares Brandão, doutora em ciências da literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e fundadora do Centro Cultural Níkos Kazantzákis.

Obra rara

A história do livro no país tem aspectos curiosos. A tradução já publicada, com a assinatura de Clarice Lispector, uma das mais conceituadas escritoras do século 20, é hoje muito rara e chega a custar R$ 300 em sebos na internet. Na época, vários escritores importantes faziam traduções, sob pseudônimos, para complementar a renda, mas não há como afirmar que não houve motivação pessoal da autora.

Outra importante escritora relacionada ao livro, Hilda Hilst declarou muitas vezes que o Testamento foi responsável por uma mudança radical em sua vida. “Com Kazantzákis, Hilda aprendeu principalmente a ser um escritor de ofício”, revela o jornalista Gutemberg Medeiros, que foi amigo da escritora.

Presenteada com a edição francesa do livro, Hilda Hilst começou a se questionar sobre a vida que levava a partir da filosofia contida nele, e isso a motivou a construir a Casa do Sol, na fazenda do pai, em Campinas (SP), onde passou a viver até sua morte. Ali, ela escrevia e lia todo o tempo, construindo sua reconhecida obra, que inclui ficção, poesia, crônicas e dramaturgia.
Hilda Hilst
A escritora Hilda Hilst declarou muitas vezes que ‘Testamento a El Greco’ foi responsável por uma mudança radical em sua vida. Com Kazantzákis, ela teria aprendido a ser ‘um escritor de ofício’. A foto foi tirada em outubro de 1998 em seu escritório na Casa do Sol, em Campinas (SP). (foto: Yuri Vieira/ Wikimedia Commons – CC BY 3.0)
Para Kazantzákis, a felicidade reside no ato de criar. Segundo ele, e autores anteriores a ele, o ser humano não é feliz por ser assombrado com a certeza de sua morte – uma barreira intransponível, pois não há como nos tornarmos imortais. Para o escritor, só é possível superar essa angústia por meio do ato criador, que rompe o limite da mortalidade. “Qualquer criação permite isso, não necessariamente a artística, e um exemplo é o ato sexual”, diz Lucília Brandão. Para a tradutora, é essa filosofia que torna esse escritor memorável. “É uma ideia que perpassa todos os seus livros, independentemente da história contada em cada um”, explica.

Para Kazantzákis, o ser humano não é feliz 
por ser assombrado com a certeza de
 sua morte – uma barreira intransponível. 
 E só é possível superar essa angústia 
por meio do ato criador
 
No entanto, o momento criador é efêmero. O ser humano logo retorna à noção de que é mortal. E precisa buscar novamente esse momento do ato criador, para encontrar a felicidade real, e no momento presente. “Kazantzákis coloca inclusive em dúvida se há um momento após a vida – sua busca é principalmente pela felicidade nesse mundo material”, afirma Lucília. “É naquele momento, quando você está imbuído do que vai criar, que ultrapassa a vida efêmera e atinge a eternidade.”

O romance, embora não seja autobiográfico, narra o caminho do escritor em busca do ato criador. Ao assumir o desafio de verter o livro do grego para o português, Brandão sabia que a tarefa não seria fácil. “Quando se traduz, se interpreta”, resume. “Ao passar de uma língua para outra, busca-se a palavra que mais se aproxima daquilo. Mesmo que se encontre uma muito parecida, já se deturpou [o sentido] e, ao traduzir uma tradução, são duas deturpações”, analisa, referindo-se à tradução de Clarisse Lispector, baseada na versão francesa.

Um equívoco de tradução, segundo Brandão, aconteceu com o título do livro no Brasil, Testamento a El Greco. Segundo a nova tradutora, a ideia do título em grego é a de ‘prestar contas’ a alguém. “E, embora o autor fale de El Greco no livro, no original a prestação de contas não é especificamente ao pintor, mas ao grego, no geral”, diz.

Uma tradução literal do título seria Relatório para o grego, mas esta e outras decisões da tradução, ainda em andamento, não foram tomadas. “O lançamento está previsto para junho de 2014”, explica Bárbara Cassará, editora e idealizadora do projeto. “Com certeza, depois do sucesso da arrecadação, estamos otimistas com a publicação da obra.”
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Isadora Vilardo
Fonte: Ciência Hoje On-line

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