Contardo Calligaris*
Se eu for chamado a sabatinar um candidato, perguntarei sem falta: qual romance você está lendo?
Sempre pensei que fosse sábio desconfiar de quem não lê literatura. Ler
ou não ler romances é para mim um critério. Quer saber se tal político
merece seu voto? Verifique se ele lê literatura. Quer escolher um
psicanalista ou um psicoterapeuta? Mesma sugestão.
E, cuidado, o hábito de ler, em geral, pode ser melhor do que o de não
ler, mas não me basta: o critério que vale para mim é ler
especificamente literatura --ficção literária.
Você dirá que estou apenas exigindo dos outros que eles sejam parecidos
comigo. E eu teria que concordar, salvo que acabo de aprender que minha
confiança nos leitores de ficção literária é justificada.
Algo que eu acreditava intuitivamente foi confirmado em pesquisa que acaba de ser publicada pela revista "Science" (migre.me/gkK9J),
"Reading Literary Fiction Improves Theory of Mind" (ler ficção
literária melhora a teoria da mente), de David C. Kidd e Emanuele
Castano.
Uma explicação. Na expressão "teoria da mente", "teoria" significa
"visão" (esse é o sentido originário da palavra). Em psicologia, a
"teoria da mente" é nossa capacidade de enxergar os outros e de lhes
atribuir de maneira correta crenças, ideias, intenções, afetos e
sentimentos.
A teoria da mente emocional é a capacidade de reconhecer o que os outros
sentem e, portanto, de experimentar empatia e compaixão por eles; a
teoria da mente cognitiva é a capacidade de reconhecer o que os outros
pensam e sabem e, portanto, de dialogar e de negociar soluções
racionais. Obviamente, enxergar o que os outros sentem e pensam é uma
condição para ter uma vida social ativa e interessante.
Existem vários testes para medir nossa "teoria da mente" --os mais
conhecidos são o RMET ou o DANVA, testes de interpretação da mente do
outro pelo seu olhar ou pela sua expressão facial. Em geral, esses
testes são usados no diagnóstico de transtornos que vão desde o
isolamento autista até a inquietante indiferença ao destino dos outros
da qual dão prova psicopatas e sociopatas.
Kidd e Castano aplicaram esses testes em diferentes grupos, criados a
partir de uma amostra homogênea: 1) um grupo que acabava de ler trechos
de ficção literária, 2) um grupo que acabava de ler trechos de não
ficção, 3) um grupo que acabava de ler trechos de ficção popular, 4) um
grupo que não lera nada.
Conclusão: os leitores de ficção literária enxergam melhor a
complexidade do outro e, com isso, podem aumentar sua empatia e seu
respeito pela diferença de seus semelhantes. Com um pouco de otimismo,
seria possível apostar que ler literatura seja um jeito de se precaver
contra sociopatia e psicopatia. Mais duas observações.
1) A pesquisa mede o efeito imediato da leitura de trechos literários.
Não sabemos se existem efeitos cumulativos da leitura passada (hoje não
tenho tempo, mas "já li muito na adolescência"): o que importa não é se
você leu, mas se está lendo.
2) A pesquisa constata que a ficção popular não tem o mesmo efeito da
literária. A diferença é explicada assim: a leitura de ficção literária
nos mobiliza para entender a experiência das personagens.
"Como na vida real, os mundos da ficção literária são povoados por
indivíduos complexos cujas vidas interiores devem ser investigadas, pois
são raramente de fácil acesso."
"Contrariamente à ficção literária, a ficção popular (...) tende a
retratar o mundo e as personagens como internamente consistentes e
previsíveis. Ela pode confirmar as expectativas do leitor em vez de
promover o trabalho de sua teoria da mente."
Em suma, o texto literário é aquele que pede esforços de interpretação
por aquelas caraterísticas que foram notadas pelos melhores leitores do
século 20: por ser ambíguo (William Empson), aberto (Umberto Eco) e
repleto de significações secundárias (Roland Barthes).
Na hora de fechar esta coluna, na terça-feira, encontro a mesma pesquisa
comentada na seleção do "New York Times" oferecida semanalmente pela Folha.
A jornalista do "Times" pensou que a leitura literária, ajudando-nos a
enxergar e entender os outros, facilitaria nossas entrevistas de emprego
ou nossos encontros românticos.
Quanto a mim, imaginei que, na próxima vez em que eu for chamado a
sabatinar um candidato, não esquecerei de perguntar: qual é o romance
que você está lendo? E espero que o candidato mencione um livro que
conheço, para verificar se está falando a verdade.
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* Contardo Calligaris, italiano, é psicanalista, doutor em
psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School
de NY e foi professor de antropologia médica na Universidade da
Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as
aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve
às quintas na versão impressa de "Ilustrada".
Fonte: Folha on line, 17/10/2013
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