As reações acaloradas a uma crônica da escritora Carol Bensimon sobre a classe média reacendem a discussão sobre a identidade do maior extrato da população
Antes eram as pessoas da sala de jantar, ocupadas em nascer e
morrer – como na letra de Gilberto Gil e Caetano Veloso interpretada
pelos Mutantes na faixa-título de Panis Et Circensis.
Hoje poderiam ser as famílias que passeiam com seus cachorrinhos de
roupinha no parque, passam o Ano Novo em Punta, são antenadas em
tecnologia e avessas à política. Ou seriam os profissionais que se
dividem entre dois empregos, pagam faculdade particular à noite,
economizam para comprar um carro em até 99 prestações?
Com a ascensão econômica na última década de uma faixa antes excluída do mercado, o imaginário sobre a classe média brasileira mudou.
Ou, pelo menos, ficou mais complexo. Ao mesmo tempo em que o conceito
ainda acolhe setores mais estabelecidos e conservadores da população, a
classe média brasileira vem sendo provocada pela chegada de novos atores
- que desafiam estereótipos e privilégios estabelecidos.
Entre 2004 e 2010, 32 milhões de pessoas ascenderam às classes A, B e
C e 19,3 milhões saíram da pobreza, segundo dados do Governo Federal.
Como resultado, em 2012, 54% da população brasileira teria chegado à
classe média. Só que o significado desse fenômeno divide analistas.
Enquanto alguns identificam o surgimento de uma nova classe C, outros
contestam a versão, por considerarem que esse incremento na renda não
vem acompanhado da apropriação de outros capitais essenciais - como o
cultural.
Autor do livro Nova Classe Média: O Lado Brilhante da Base da Pirâmide,
o economista Marcelo Neri, atual ministro da Secretaria de Assuntos
Estratégicos da presidência da República e presidente do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), foi um dos responsáveis por cunhar a
expressão. Segundo ele, os grupos mais vulneráveis foram justamente os
que mais se beneficiaram das políticas sociais. Entre 2001 e 2012, por
exemplo, a Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios mostrou que a
renda dos 10% mais pobres cresceu 120%, enquanto a dos 10% mais ricos
aumentou 26%.
– As pessoas que estavam no topo agora estão sofrendo as dores de ter
de dividir espaços públicos e privados, e isso incomoda, por isso
existe preconceito – avalia.
Apesar de concordar que existe um desconforto da classe média
tradicional com a ascensão econômica dos emergentes, o sociólogo Jessé
Souza considera equivocada a ideia de uma nova classe média. Prefere
definir os emergentes como “Os batalhadores brasileiros”, título de um
de seus livros. O principal argumento é que uma classe não é definida
apenas pela situação econômica - por isso seria enganosa a noção de que,
por ganharem um pouco mais, os ex-pobres estariam em condições de
igualdade com a classe média tradicional. Por isso, um operário que
trabalha dia e noite para pagar a parcela do cartão de crédito ou
alcançar o diploma em uma universidade privada não poderia ser comparado
a um colega que tem ajuda do pai para pagar os estudos.
– Existe uma série de outros capitais que ficam à sombra, e por
ficarem à sombra não são reconhecidos como um privilégio social. A
sociedade moderna vive a ilusão da meritocracia, mas é uma mentira. O
ponto de partida das classes sociais é montado desde o berço, e ninguém
escolhe onde nasceu. O capital cultural é invisível e garante vantagens
para quem tem. Ele é tão importante quando o capital econômico, quem tem
capital cultural sempre vai estar à frente – analisa Souza, que é
professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).
Preocupados em manter sua posição, setores da classe média
tradicional alimentariam um certo “racismo de classe” com os emergentes,
desprovidos do capital cultural que compartilham. Apegados ao seu
status, tenderiam a posições conservadoras.
– A classe média tem dificuldade de se reconhecer como privilegiada.
Age como uma tropa de choque dos endinheirados e personaliza o mal, como
se estivesse em uma novela. Todo mundo se acha bom, ruim é o Renan
Calheiros. Demoniza-se o Estado, mas não se questiona a estrutura de
poder do mercado. O mal nunca está em você, está sempre os outros –
critica Souza.
Esse conservadorismo seria inerente à própria condição de classe
média, ao menos na visão da corrente marxista. Ao demarcar a oposição
entre burguesia e o proletariado na sociedade europeia do século 19,
Marx classificou as classes intermediárias como “pequena burguesia”.
– Na abordagem marxista a pequena burguesia é vista como
intrinsecamente reacionária, porque teme descer à condição do
proletariado e anseia por valores da burguesia, embora não consiga
alcançá-los. Já na abordagem da sociologia norte-americana clássica a
classe média é vista como resultante da diferenciação funcional das
sociedades modernas, com a divisão em profissões especializadas, e por
isso teria um sentido democratizante – explica o sociólogo Renato de
Oliveira, professor do Centro Universitário Univates e assessor do
Consórcio das Universidades Comunitárias Gaúchas.
No Brasil, segundo Oliveira, as classes médias se estruturaram a
partir dos anos 1930, sob a ditadura de Getúlio Vargas e sua ideologia
conservadora. Apesar de acompanharem a arrancada da industrialização e
da modernização econômica do país, conservaram relações de servilismo e
mandonismo típicas da oligarquia. Um exemplo seria a greve nacional dos
médicos do serviço público federal, no início da década de 1950.
– O sindicato médico do Rio Grande do Sul na época publicou uma nota
no Diário de Notícias explicando por que precisavam de aumento salarial,
e para isso enumerava os itens de consumo mínimo de um médico. Entre
eles, estavam um automóvel (bem escasso na época), um orçamento diário
para esmolas e gorjetas e duas empregadas, sendo uma pajem, para cuidar
dos filhos. Ou seja, estavam querendo era reproduzir o modelo de vida da
oligarquia agrária – observa o sociólogo.
Equilibrando-se entre o sonho de ascender à riqueza e o medo de
empobrecer e perder status, extratos conservadores da classe média
adotariam comportamentos contraditórios.
– Essas pessoas se sentem democráticas mas não pagam direito
trabalhista das empregadas domésticas, ficam reclamando que aeroporto
hoje em dia virou rodoviária. O problema não é o grupo social, são as
pessoas conservadoras, reacionárias, independentemente de onde elas
estejam. Gente que mantém hábitos cafonas, voltados a um consumo
imediato – observa o escritor paulista Ricardo Lísias, autor de O Livro
dos Mandarins e Divórcio.
Ainda assim, nada é tão estanque. Ao mesmo tempo em que as classes
médias vivem uma tensão permanente para manter sua distinção social - o
que faz com que busquem sempre novas tendências e estilos à medida em
que seus hábitos são apropriados pelas classes mais populares (como bem
demonstra a migração do Orkut para o Facebook à medida que o primeiro
foi ocupado pela massa), também carregam o potencial de gestar
transformações sociais. A professora de psicologia social da USP Belinda
Mandelbaum, coordenadora do Laboratório de Estudos da Família, Relações
de Gênero e Sexualidade, lembra que fenômenos comportamentais como a
entrada das mulheres no mercado de trabalho são relacionados à classe
média - até porque as mulheres pobres sempre trabalharam.
– As classes altas e baixas estão mais estabelecidas, são extratos
mais enriquecidos. A classe média pode propor outras coisas, romper com
projetos – ressalta.
Ao questionar essas zonas de conforto, integrantes da classe média
podem ir além do estereótipo da classe, bem retratado no samba Sou
Classe Média, de Max Gonzaga: “Eu não tô nem aí / se o traficante é quem
manda na favela / eu quero é que se exploda / a periferia toda. Mas
fico indignado com o Estado / quando sou incomodado / com o pedinte
esfomeado que me estende a mão./ Só me importa / quando a tragédia bate à
minha porta”.
Doutoranda em comunicação e estudiosa da classe média no consumo de
mídia, a jornalista Lírian Sifuentes destaca que, independentemente dos
motivos, é interessante que as pessoas reflitam sobre o tema.
– Por muito tempo, foi considerado politicamente incorreto falar de
classe, pois parecia preconceito separar as pessoas. As classes sociais
não falam sobre a qualidade das pessoas, sobre seu valor, mas sobre a
posição em que elas se encontram em uma estrutura social capitalista, em
que alguns lucram a partir da exploração do trabalho de outros. Quando
se deixa de falar de classes sociais, esconde-se a desigualdade social
brasileira, que ainda é assombrosa – alerta.
O que é a classe média
> Existem diferentes metodologias para se definir o que é
classe média, o que torna mais complexo medir o tamanho e o perfil desse
extrato da população.
> Uma comissão criada pela Secretaria de Assuntos Estratégicos
da Presidência da República, por exemplo, considera uma faixa de R$ 291
a R$1.091 familiar per capita para a classe média. No caso de um casal
com dois filhos, por exemplo, que recebe conjuntamente R$ 1.660, seria
preciso dividir a renda por quatro para saber o valor per capita: o que
resultaria em R$ 415 por pessoa.
> Outra definição é a do Critério Brasil, como é conhecido o
critério de classificação econômica das empresas de pesquisa, que
distribuem a população nas classes A, B, C, D e E. Ali se verifica é um
crescimento do número de pessoas na classe C, que compreende famílias
com renda mensal entre R$ 1.315 e R$ 5.672.
> A classificação a partir da ocupação também é utilizada.
Mesmo que os rendimentos variem, há um padrão médio de vida conforme a
ocupação, além da exigência de um determinado nível de escolaridade.
Fontes: SAE/PR e jornalista Lírian Sifuentes, que pesquisa a classe
média no consumo de mídia em seu doutorado em Comunicação pela PUCRS.
POLÊMICA recorrente
> Não é de hoje que declarações sobre a classe média causam furor.
Em maio deste ano, por exemplo, a filósofa Marilena Chauí polemizou ao
dizer que odiava a classe média, durante o lançamento do livro “10 anos
de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma”.
> Em um dos trechos de discurso, gravado em vídeo e difundido na
internet, disse o seguinte: “Eu odeio a classe média. A classe média é
um atraso de vida, a classe média é a estupidez, é o que tem de
reacionário, conservador e ignorante, petulante, arrogante,
terrorista....Me recuso a admitir que os trabalhadores brasileiros,
porque eles galgaram direitos... dizer que essas lutas e essas
conquistas fizeram a gente virar classe média? De jeito nenhum. A classe
média é uma abominação política política, porque é fascista, é uma
abominação ética porque é violenta, e é uma abominação cognitiva porque é
ignorante. Fim”
> Uma das reações veio do professor Luís Augusto Fischer, que publicou artigo em ZH sobre o tema:
“Não paro de pensar na filósofa que odeia toda uma classe,
casualmente a minha. Mas por quê? Aliás, é possível odiar uma classe? O
marxismo original preconizava o combate à burguesia, em favor do
socialismo. Mas burguesia não é igual a classe média; será combate igual
a ódio? Por certo há, na classe média, talvez mais do que acima e
abaixo dela, muita gente trivial, que não pensa e não gosta de quem
pensa; mas na classe média, igualmente, não nascem pessoas que valem a
pena, inclusive para os melhores propósitos da esquerda democrática,
como a luta pela distribuição de renda e pela igualdade de direitos?”
CADERNO CULTURA
Carol Bensimon: "O brasileiro classe média"
O brasileiro classe média, ano-base 2013, tem um pet. Não um gato,
não um cachorro. Um pet. O brasileiro classe média puxa conversa sobre o
pet com donos de outros pets: "Dois dão o mesmo trabalho que um. Só
gasto mais em ração". Esse é um momento importante na vida do brasileiro
classe média, pois pressupõe uma interação social que se desenvolve na
calçada, ainda que estimulada pelas necessidades fisiológicas do pet. O
brasileiro classe média quase nunca é visto na calçada, salvo quando
entra e sai de seu carro.
O brasileiro classe média vai para a academia de carro. O brasileiro
classe média tem um carro com insulfilme, "dá mais segurança, não se
consegue ver direito quem tá dentro", pois bandidos costumam roubar
carros com uma pessoa, mas não com duas, preferem carecas aos homens de
bigode, e jamais se meteriam com alguém vestindo uma camisa havaiana. O
brasileiro classe média pode ter um rosário pendurado no retrovisor do
carro, mas ninguém lá do Céu emitiu uma opinião muito clara sobre ser
errado usar a vaga do deficiente físico quando se está com pressa e
parece muito complicado encontrar lugares nessa droga de estacionamento.
O brasileiro classe média fura o sinal no domingo à tarde porque "não
tá vindo ninguém".
O brasileiro classe média acredita em bairro planejado, brigadeiro
gourmet e
bufê-de-saladas-pratos-quentes-sushi-churrasco-ilha-de-massas-por-R$
42,90. O brasileiro classe média nunca nega os caramelos e amendoins que
a companhia aérea lhe oferece. Durante o voo, o brasileiro classe média
não lê, dorme. Em solo estrangeiro, será reconhecido menos pelos maus
modos do que pelos ostentosos e deslocados tênis de corrida, os quais, a
seus olhos de brasileiro classe média, parecem adequados para qualquer
ocasião.
O brasileiro classe média não faz, compra pronto. O brasileiro classe
média não recebe em casa, mas no salão de festas do condomínio. A
mulher brasileira classe média tem cabelo longo, liso e loiro. Ela é
casada com o cara que gosta muito de camisas de times de polo e se acha
20 anos mais jovem do que realmente é (às vezes pelo simples fato de
estar usando tênis de corrida). A mulher brasileira classe média vai ao
salão fazer as unhas, ou chama a manicure em casa. E as manicures são
obviamente as novas empregadas domésticas.
O brasileiro classe média pedindo pão no supermercado: "Me dá cinco.
Bem clarinhos". O brasileiro classe média flagrado enquanto conduzia em
alta velocidade: "Essa indústria da multa, vou te contar". O brasileiro
classe média atendendo ao celular no meio do filme: "Alô? Tô no cinema!
Me liga depois!" Senhoras e senhores, é muita jequice. (Texto da ZH on line, 14/10/2013)
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Reportagem por
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