David Santa Cruz*
José Mujica pode se dar o luxo
de ficar na tribuna das Nações Unidas para falar da felicidade e do
tempo livre, para se declarar social democrata como a maioria dos
guerrilheiros que sobreviveram a sua própria utopia e se incorporaram à
luta eleitoral.
Quando José Mujica não é um homem de Estado é um sonhador. Chegou
ao poder já velho, mas não cansado e sua aposentadoria como
guerrilheiro a vive como presidente do Uruguai. Seus discursos nas
cúpulas internacionais e na ONU causam turbulência, embora estejam longe
de ser incendiários.
Se tivesse tido acesso à tribuna quando era
parte dos Tupamaros o tom seria outro, seus discursos seriam como foram
os de Che Guevara, quem aos 36 anos, em 11 de dezembro de 1964, como
ministro da indústria de Cuba, insistia em plena Nações Unidas na sua
disposição a dar a vida para libertar qualquer povo do mundo. Aos seus 78 anos, Mujica afirmou nesse mesmo organismo que “talvez hoje a primeira tarefa seja salvar a vida”.
Entre 1965 e 1966, os jovens anarquistas e
socialistas do Uruguai se uniram no Movimento de Libertação Nacional
Tupamaros (MLN-T), entre os libertários estava Mujica.
Essa guerrilha se inspirou na que Fidel
Castro e o próprio Ernesto “Che” Guevara. De modo semelhante aos outros
guerrilheiros do continente, os comunistas uruguaios viam na Revolução
Cubana a confirmação que era possível derrubar as oligarquias.
Embora o próprio Che fosse incapaz de
replicar o triunfo, sua expedição à Angola se transformou na “história
de um fracasso” segundo suas próprias memórias e na Bolívia foi morto,
não em batalha, mas assassinado por militares que temiam a pressão
internacional se o levassem ao julgamento depois de sua captura.
Mas voltemos ao Uruguai, aquele país no
oriente sul-americano vivia uma democracia com aspirações autogolpistas
que se concretizaram em 1973 e um presidente constitucionalmente eleito
foi substituído e uma ditadura militar na qual os civis encabeçavam e
legitimavam o governo. Nesse contexto, José Mujica foi ferido com seis tiros e permaneceu preso por 15 anos. Também conheceu a mulher que até hoje é a sua esposa.
O Pepe Mujica aumentou sua fama em 2012 quando o jornal espanhol El Mundo o batizou como presidente mais pobre do mundo.
Até seu sítio, ‘chácara’ dizem no sul,
chegaram à mídia como a rede inglesa BBC que procurava o presidente que
plantava flores, arrumava ele mesmo seu trator e tinha uma cachorra
manca como animal de estimação. Tudo para encontrar a origem de sua
pobreza. A resposta é que doa 90% de seu salário às obras
sociais. Algo insólito no mundo onde a classe política tende a se
enriquecer de maneira desproporcional comparada com a administração pública, mesmo em épocas de crises e desemprego, embora custe o sangue e a fome do povo.
Seu aspecto bonachão ajuda, suas vestes
simples o enaltecem. Que somente tenha um Volkswagen sedan 1987 –
aqueles que no México chamam de “vochos” e o resto do mundo fuscas – e
que o use para ir ao trabalho como presidente o completa com uma
congruência irrebatível no senso comum: “é o melhor presidente do mundo”
disseram os integrantes de rock Aerosmith, que foram conhecê-lo e lhe
deram uma guitarra autografada.
Mas José Mujica não gosta desse mote. Disse que não é o mais pobre do mundo, que
pobres são aqueles que precisam muito para viver, e ele é um camponês
que tem o suficiente. Um dono de chácara (floricultor) segundo a
própria pagina da presidência uruguaia. Seus detratores o tacham de
radical e populista, de ser um demagogo e que criar um personagem: o
Pepe. Embora os próprios uruguaios atestem que em encontros pessoais e
histórias de rua indicam o contrário. Em Valizas, uma das praias mais
badaladas do Uruguai, escutei da bocade um engenheiro agrônomo dizer
que, antes de chegar à presidência, Mujica ia comprar plantas e semente
para sua chácara e sempre as comprava um pouco da empresa onde ele
trabalhava e outro tanto da concorrência, assim que na opinião do
agrônomo era equitativo na medida do possível.
Em sua chácara há apenas dois policiais vigiando, nada a ver com o oneroso e vergonhoso grupo de militares. Ali
vive como sua esposa, a também ex-guerrilheira e agora senadora Lucía
Topolansky, a mesma que continua sendo líder do congresso e seu marido o
presidente do Uruguai. Uma história que pareceria um conto de
fadas mas sem príncipes nem princesas, mas sim como calabouços,
torturas e perseguições para ambos. Um par de fugas de filmes e logo uma
vida no campo. Atualmente os jornalistas que têm visitado o escritório
de Topolansky percebem que ali há três fotos: a do Che, do Pepe e de
Gardel.
O segundo fato que levou esse homem humilde ao status de astro do rock foi sua proposta de legalizar a maconha no país. Se
conseguisse, seria o primeiro na América, mas sobretudo o início de
mudança do paradigma no combate às drogas que deixa milhares de mortos
somente na Colômbia e México e que pouco a pouco se expande ao Peru,
Bolívia e o fator que aumenta a violência na paupérrima América Central.
A oposição acusa dizendo que essa medida é uma distração para não falar
da crescente insegurança no Uruguai, a inflação e os demais males de
todos os países do mundo. Pode-se afirmar que com pouco mais de
três milhões de habitantes é um ator minúsculo do sul, dentro do
contexto internacional. Rodeado, como se fosse pouco, de dois gigantes
regionais: Argentina e Brasil, o resto é o Atlântico.
Por isso, José Mujica pode se dar o luxo de
ficar na tribuna das Nações Unidas para falar da felicidade e do tempo
livre, para se declarar social democrata como a maioria dos
guerrilheiros que sobreviveram a sua própria utopia e se incorporaram à
luta eleitoral. Ficar ali em pé e lhes dizer não serve muito, pois
“nosso mundo precisa menos organismos mundiais de toda laia, que
organizam fóruns e conferências que só ajudam os hotéis e as companhias
aéreas”.
E como exemplo de que os organismos
internacionais refletem os interesses daqueles que criticaram, Uruguai
contribui com 14% das forças armadas para as missões de paz, apenas 2500
soldados. Nada se pensamos que EUA tem 33 mil no Japão, mas muito se
consideramos as dimensões do país sul-americano, “há anos, sempre
estamos nos lugares que nos pedem, entretanto, onde se decide e repartem
os recursos não existimos nem para o café”, replicava Pepe diante a uma
casa quase vazia, na qual horas antes se juntavam pessoas para ser
testemunhas de como o presidente Barack Obama declarava a inexistência
ou morte do imperialismo norte-americano. Apesar disso, ainda houve
suficiente espaço na imprensa para o discurso “filosófico” de Mujica.
Em geral, os estudiosos das relações
internacionais afirmam que basear a análise a partir de indivíduos é um
erro, dizem-nos que tampouco importam os princípios ideológicos, mas sim
as consequências morais de seus atos. Que pouco há que notar como
governo, senão no tipo de governo que exercem, colocando as democracias
acima de toda outra forma de governo. Entretanto, às vezes aparecem
personagens cuja particularidade rompe qualquer esquema. Esse é o
caso de José Mujica, o presidente do Uruguai, que quando não era um
sonhador, tem que atuar como homem de Estado que considera a presidenta
da Argentina, Cristina Kirschner, uma velha teimosa e difícil
de negociar.; que se nega a entorpecer suas relações com a União
Europeia para defender a dignidade de Evo Morales após ser preso na
França de maneira ilegal ou que busca acordos bilaterais extra Mercosul,
porque afinal, como todo homem de estado, sua obrigação é velar
primeiro pelos interesses de seu povo.
Sobre seu passado é limpo, o dia que lhe
perguntaram s havia matado alguém respondeu: tenho má pontaria. Tem dito
que seus erros são filhos do tempo que lhe coube viver, como tal assume
que às vezes um ex-guerrilheiro também sonha e lhe dá vontade de
gritar: “Que tenha a força de quando bebíamos tanta utopia”.
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* David Santa Cruz é jornalista mexicano, tem colaborado com
mais de 20 meios de comunicação em diversos países. Trabalhou como jornalista da
edição Internacional da AméricaEconomia. Hoje estuda mestrado em Estudos
Internacionais na UDT, na Argentina.
Fonte: http://americaeconomiabrasil.com.br/23/10/2103
Imagem da Internet
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