Renato Janine Ribeiro*
Isso recorda uma questão que aparece na filosofia desde Aristóteles: é melhor ser governado por boas leis ou por bons reis? Há argumentos para as duas posições. Boas leis são necessárias. Mas bastam? Para aplicá-las não é preciso o critério de bons líderes, capazes de modulá-las? Mas, se o pêndulo favorecer o bom rei, não cairemos num regime arbitrário, em que o governante fará o que quiser? Ainda mais, e esta resposta me parece decisiva, onde está o Bem? Quem garante que esteja deste lado, e não do outro? Porque, se soubermos onde está o Bem, não precisaremos de leis, de instituições, de eleições.
Estamos divididos, como alertava o filósofo grego, entre as instituições e nossas visões do Bem. Esta divisão não é privilégio nosso. Os Estados Unidos são o caso modelar. Constituem o exemplo supremo de país, na modernidade, em que a democracia coexiste com práticas desumanas, a começar pela escravidão. Na América Latina, a escravatura fazia parte do despotismo. Quando acaba o regime despótico, acaba a propriedade do homem pelo homem. Já nos Estados Unidos, a escravidão e depois a segregação racial couberam em regimes democráticos. São hoje a único democracia a aplicar, com frequência, a pena de morte. Chegaram a empossar, em 2000, um presidente derrotado nas eleições. Mas isso convive com instituições democráticas, e quando estas falham redondamente - mantendo a escravatura, o linchamento, a segregação, a pena de morte, a fraude eleitoral - o resultado é acatado, porque se crê nas regras do jogo. E se acredita que, com essas regras, as coisas possam melhorar. E com o tempo melhoram. Daí que as instituições pesem tanto naquele país e, embora falhem muitas vezes, seus cidadãos possam, o que nos surpreende e até nos faz rir, também acreditar que encarnam o bem, que representam o Bem na Terra.
Os moinhos moem devagar mas
de forma sustentável
O que deu certo nos Estados Unidos foi a aposta na via institucional, mesmo com quebras dela - como a Guerra de Secessão ou, nos anos 60, a quase guerra civil que incendiou os bairros de negros. Quase guerra civil porque o presidente Lyndon Johnson conseguiu aprovar uma legislação de direitos humanos pacificando a relação entre as etnias e fazendo seu país, mais atrasado na época que o Brasil no respeito ao negro, se tornar em poucas décadas uma referência para nós. A mesma via das instituições funcionou no Reino Unido. Já em outra grande democracia, a França, a ruptura prevaleceu mais vezes. Aqui, cabe a questão: queremos o cumprimento das leis, mesmo que inviabilize a curto prazo o Rede, ou - porque Marina é representativa e seria absurdo não poder disputar, em 2014, a Presidência - preferiríamos soluções extraordinárias?
Confesso, com toda a simpatia que tenho pelo Rede, preferir a via das instituições. Comete erros mas, com o tempo, eles são sanados. Não nego que seja preciso pressionar as instituições. Até entendo pressões, como algumas ações dos manifestantes de maio e junho, que ficam perto da ilegalidade. Não as justifico eticamente, mas compreendo sociologicamente. Contudo, aprovar um partido porque é do Bem me parece abrir a via para todo tipo de arbitrariedade. Estamos perto de uma das piores formas de tirania, que é a tirania do Bem, melhor dizendo, a tirania exercida em nome do Bem (porque, o Bem, onde ele estará? quem tem acesso a ele, quem fala em seu nome?). Foi esse um dos vícios originais do comunismo. É esse o risco, hoje, de quem invoca o Bem na política (não, não me refiro a Marina nem ao Rede).
Na era clássica, que é como chamamos os séculos 17 e 18, era comum distinguir a ação ordinária e extraordinária do rei. Seu poder ordinário estava na aplicação das leis, a exemplo de Deus quando rege o mundo por suas leis usuais, como a água fervendo a cem graus ou o sol nascendo todo dia. Mas, assim como o Criador eventualmente recorria ao milagre, parando o sol diante de Josué, também o rei agia extraordinariamente. Isso, para eles, era mais ou menos normal - nem tão normal assim, porque a Revolução Inglesa de 1640 se deu contra o "milagre" que Carlos I pretendia praticar, suspendendo a Constituição.
Estaremos hoje - quando alguns cogitam deixar em segundo plano a rota das leis, das instituições, em favor do espírito da lei, do Bem - de novo querendo milagres que nos salvem de um cotidiano tido por insuportável? Mas os protestantes diziam que a era dos milagres tinha passado. Talvez a fé católica em milagres e a descrença protestante neles explique por que estes últimos foram mais capazes de construir as primeiras grandes sociedades democráticas. Milagres são lindos, mas a sociedade não é feita deles. Da religião, prefiro a passagem sobre os moinhos de Deus que moem lentamente, mas muito fino. Só isso é sustentável. Só isso educa.
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* Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras
E-mail: rjanine@usp.br
Fonte: Valor Econômico on line, 07/10/2013
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