Paulo Ghiraldelli*
A história da cultura tem sido contada e escrita
por meio de uma perspectiva erótica.
O filósofo alemão Peter Sloterdijk, ao menos no
livro Ira e Tempo, tenta abordá-la a partir
de uma perspectiva timótica. Com Django Livre,
Tarantino faz o mesmo no cinema.
Eros é o deus do amor. Eros ou o amor é a
força que une. Cada coisa no mundo busca a outra porque não tem o que a
outra tem. A carência cria o impulso para a aproximação. O amor (eros)
realiza então o enlace, a junção, a fecundação. Nossa história toda
sempre foi contada como uma história de guerras e alianças, conflitos e
paz, brigas e conciliações, lutas de classes e colaboração de classes,
desuniões e uniões. Esse tipo de história conta muita coisa, mas deixa
mais um bocado de outras de lado.
Como fazer uma história em outra
perspectiva? Podemos investigar a psique e arrancarmos outros elementos
humanos não enfatizados? Que tal irmos à psique em sua origem
filosófica?
A psicologia de Platão mostra uma alma
(psique) tripartite: razão, apetites e uma parte intermediária chamada
timos, o lugar daquilo que nós modernos, ao optarmos pelo regime
dualístico de razão e paixão, colocamos no segundo campo, o campo das
emoções e sentimentos. Coragem, fúria, medo, ira etc. – eis aí os
elementos timóticos. Não são elementos nem racionais e nem sensíveis.
São elementos emocionais, paixões. Esses elementos timóticos, na
tradição grega e platônica, são responsáveis pelas nossas identidades.
Por eles e com eles exigimos reconhecimento, ou seja, queremos que o
outro nos aponte segundo o que queremos ser e, principalmente, parecer.
Uma história timótica é uma história em que o fio condutor é o
reconhecimento, ou seja, a identidade arrancada da ira, da vingança. É
isso que aprendemos de Platão, na leitura instrumental de Peter
Sloterdijk
Django Livre nada é senão essa “virada para a ira” feita por Tarantino. (1)
Tarantino sempre trabalhou com a
violência e a vingança. Mas ainda não fazia uma história timótica. A
vingança aparecia em seus filmes para cumprir uma função aristotélica: a
catarse. Em Django livre ele muda. A vingança aparece como um elemento
de reconhecimento, de criação de identidades. Eis então que a trama
aparentemente simples de Django se torna uma das tramas mais complexas,
em termos de profundidade psicológica, de Tarantino.
Alguns críticos do filme caíram na armadilha de Django Livre.
Tomaram Django Livre como um filme simples, até simplório. Mas esse
pessoal poderia reescrever suas críticas caso levassem a sério essa
saída da história erótica para a história timótica.
A pergunta do filme não é outra senão
“quem é humano?” Os negros são humanos? Podem eles frequentar a Casa
Grande como gente? Nessa hora, já no meio do filme, Tarantino prega uma
peça. Ele tira de cena a disputa entre negros e brancos para colocar no
centro do filme a incômoda verdade, a disputa entre dois negros para ver
quem pode ser chamado de humano pelo branco. Afinal, quem conseguiu
colocar sua força timótica – sua ira – contra si mesmo, contra seus
desejos, podendo atravessar a soleira e adentrar a Casa Grande? Ou, nos
termos do filme: quem conseguiu fazer seu crânio de negro mais parecido
com o daquele negro que mais se aproximou do humano, aquele crânio com
as marcas naturais da submissão?
O negro Django (Jamie Fox) não tem de se
vingar heroicamente do branco Calvin Candie (Leonardo de Caprio). Não!
Pois Candie está longe de ser a real maldade. A real maldade é a própria
vingança, mas não qualquer vingança. Trata-se da vingança contra si
mesmo, que depois se transforma no ímpeto vingativo contra toda e
qualquer mudança. Esse mal é o que está encarnado em outro negro:
Stephen (Samuel Jackson). (2)
Esse homem, Stephen, é o vingativo que
fez a vingança se virar contra si mesmo, em uma forma não incomum.
Negando tudo que pudesse nele representar os desejos, tudo aquilo que
poderia lhe mostrar como animalesco, ele passou então, como rei de si
mesmo, a temer qualquer mudança do mundo que viesse a lhe jogar na cara
uma nova verdade: “olha Stephen, seu sacrifício, sua dor, foram em vão,
pois nenhum negro precisa se ferir tanto para ser gente”. O mundo só
pode ser mudado uma vez, de modo que toda e qualquer desgraça que se
tenha de passar, que ela seja única. Duas vezes, não. Duas vezes seria
insuportável. É isso que Stephen pensa e teme. Ele teme que negros e
brancos possam se dar bem juntos, esta seria a segunda mudança que faria
dos negros obterem o direito de entrar na Casa Grande sem sacrifício.
Isso lhe tiraria o reconhecimento que conseguiu com tanto sacrifício.
Stephen é o negro realmente vingativo,
não Django. Stephen se vingou de si mesmo na sua louca transformação de
animal selvagem africano para animal doméstico americano. Fez-se senhor
em uma terra imutável, um cosmos que jamais se alteraria novamente de
modo a nunca mais fazê-lo sofrer o que já havia sofrido. Nessa terra sem
mudanças, ele adquiriu um segredo: o conhecimento da sua própria
psicologia e, portanto, uma arguta capacidade de perceber o significado
escondido nos olhares de seus irmãos de pele. Ora, com isso em punho
podia transitar facilmente na Casa Grande, tinha uma utilidade a mais do
que a de simples animal doméstico.
Stephen aparece no filme duplamente
caracterizado. Há momentos em que é o negro velho puxa saco, uma espécie
de ama velha do patrão, nada mais que o animal doméstico. Há momentos
em que de velho bobo ele não tem nada, menos ainda de escravo. Sentado
na biblioteca do patrão como se fosse o dono da casa, com um copo de
vinho na mão e com as pernas cruzadas de um modo que só um branco faria,
conta ao jovem proprietário de Candyland como este está sendo enganado
pelos visitantes. Stephen faz isso porque não pode admitir o mundo
alterado. Ele já sofreu demais para conseguir de dentro do inferno se
tornar não o ajudante do demônio, mas o próprio demônio. Ele se vingou
do destino que teve impondo a si mesmo a mais dura e terrível
disciplina: a daquele que põe sua ira contra seus desejos em favor da
razão, mas uma razão que não é propriamente sua, mas do outro. Sua razão
manda ser servil e matreiro. Sua vingança não pode parar, ela atinge
todos que possam sonhar tornar esse mundo ser diferente do que é. Seu
ódio de Django não é tanto por Django, mas porque este não quer aceitar o
destino, este não quer se ferir para se tornar humano, mas quer se por
humano simplesmente porque se acha humano. Este homem, Django,
preanuncia para Stephen o mundo alterado, o mundo em que todo o esforço
timótico dele contra si mesmo aparecerá como sendo em vão. Trata-se do
mundo que, logo depois, realmente é criado pelo principal produto da
Guerra de Civil, o fim da escravidão.
Quando Stephen prende Django, o que ele
mais quer é mandar o herói para um campo no qual o negro morra pela
rotina. Django não quer ferir a si mesmo! Django vive no futuro, um
mundo em que um negro anda em um cavalo! Django vive num mundo em que o
negro deverá colocar sua ira contra si mesmo em uma quantidade talvez
igual a do branco, mas não mais! Ora, para Stephen, Django tem de
aprender que esse mundo não pode existir. Que Django aprenda isso
voltando ao que há de menos humano na face da Terra: viver sob os ciclos
naturais, como fazem os animais, um inseto, o de levantar e quebrar
pedras o dia todo, sem nome e sem qualquer aspiração.
Todavia, as coisas não saem como Stephen
quer. Django destrói Candyland do mesmo modo que a Guerra Civil, logo
depois, colocará pelos ares a escravidão. Vinga seu povo. Mas essa
vingança não é a vingança que Tarantino tematiza como a principal. A
vingança que move o mundo, e que está na base do que corrói almas e faz
história, é da pior espécie, ou, dizendo de outro modo: é a vingança
mais dolorida. Trata-se da vingança contra todos os que querem fazer com
que duvidemos que o Sol, amanhã, nascerá novamente, em eterna
repetição. Stephen diz ao final, agonizante, profetizando o destino
sempre igual que ele imagina que será o de todo negro e de todo branco.
Ele grita para Django: “você não vai conseguir matar todos os brancos
que irão ao seu encalço, eles o pegarão”.
A Guerra Civil desmentiu Stephen só em
parte. A escravidão acabou, mas a discriminação não. Aliás, sabemos bem,
ela veio bater em nossa porta. Com a discriminação, foram produzidos
muito mais Stephens que Djangos. Assim, junto da literatura e da
filosofia evocada por Tarantino, seu show de imagens traz de brinde essa
possibilidade de continuarmos a pensar sobre o estágio de nossa
consciência social atual.
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* Paulo Ghiraldelli, filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/django-so-e-possivel-a-luz-de-sloterdijk/
1. Tarantino dá a dica para os críticos,
que não a pegaram: o segredo está na biblioteca da Casa Grande: lá há
um volume do escritor negro Alexandre Dumas. Bem, ele é o autor de O conde de Monte Cristo. Sloterdijk lembra que esse clássico de histórias de vingança é um livro de cabeceira de Fidel Castro.
2. A cena decisiva do filme, em que ele
se mostra totalmente timótico, é uma cena muda. Trata-se da mudança de
expressão de Stephen ao ver Django chegando na fazendo … a cavalo!
Muito interessante. Fez-me compreender melhor aquilo que vi.
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