quinta-feira, 24 de outubro de 2013

O animal é tão bacana

Mário Sergio Conte*


A invasão do Instituto Royal ganhou o aplauso de aspirantes a celebridades e de oportunistas à cata de uma bandeira simpática

O mundo começou sem o homem e terminará sem ele. Existimos agora e aqui. Assim como o indivíduo não está só no grupo, e cada sociedade não está só entre as outras, o homem não está só no universo. Há os beagles e Lévi-Strauss.

O Instituto Royal, que usa animais na pesquisa de remédios para o câncer, foi invadido na semana passada. Foram tirados de lá quase 200 cachorrinhos que estariam sendo maltratados. Com black blocs na vanguarda, um grupo afrontou a PM. A causa é antiga, a União Protetora dos Animais existe no Brasil desde 1895. Novo é o recurso à violência, produto das jornadas de junho. As pessoas agora tentam resolver na marra problemas nos quais as autoridades sentam em cima.

A invasão do laboratório ganhou o aplauso de aspirantes a celebridades e de oportunistas à cata de uma bandeira simpática. Para eles, nada como filhotes de olhos aquosos e esgar semelhante à alegria humana. Ao contrário das ratazanas, os beagles são brincalhões. Fossem só roedores, a primeira opção nas pesquisas científicas, um Protógenes Queiroz pensaria 18 vezes antes de se abalar até o Instituto Royal.

Madame é perua; tal político, uma anta; a tigrada não foi ao leilão do Campo de Libra. A relação dos homens com os animais está entranhada na linguagem porque data do tempo em que se amarrava cachorro com linguiça. Em comunidades religiosas houve o bode expiatório. Noutras, continua o tabu das vacas sagradas. A idolatria serviu de escusa para bater nas bestas. Como foi criado à imagem e semelhança da divindade, e só homem tem alma, tudo bem em atirar o pau no gato, ainda que dona Chica se admirasse do berro que ele deu.

Aí a razão proclamou: o que separa a sublime música humana do turvo grunhir dos porcos não é a alma, e sim a linguagem articulada, a consciência, a capacidade de entender Protógenes. E a razão gerou a coruja de Hegel, o homem-pássaro de Mozart, a pantera de Rilke. Na mesma cultura alemã, contudo, a serpente botou o ovo do nazismo, que fez pesquisas científicas e mimetizou matadouros industriais nos campos de extermínio.

Compadecer-se dos beagles é fácil. Além de afáveis, eles são fiéis como Argos, o cão de Ulisses, o único a reconhecê-lo quando voltou a Ítaca. Eles estão próximos do indivíduo, e quem está perto recebe atenção maior. O sujeito primeiro protege a si mesmo e à família, inventa o nepotismo e emprega o sobrinho, depois defende o clã e a classe, despreza quem não é do rebanho, seus rottweilers o protegerão da horda de hienas. Assim, a caminho do Porcão, a menina que se enternece com beagles olha com fleuma o menino que vende balas num cruzamento na Lagoa. Na tocaia, a menina crescerá águia e o menino envelhecerá rapina.

Difícil é se condoer da galinha, da vaca e do peixe surdo-mudo no mar. Só quem já entrou numa fábrica de carne, sentiu o odor da morte mecanizada, sabe que a dor dos animais não é frívola. Para acabar com ela teríamos todos que virar vegetarianos. O que levaria ao problema de sete bilhões de pessoas que se alimentem sem trucidar o frango, a rês, a tainha. Uma solução é talhá-los em nacos assépticos, embrulhá-los no celofane dos supermercados, esquecer que o presunto vem da natureza como a gente.

Outra solução é acabar com a bicharada. Como não havia comida para todos, Mao Tsé-Tung proibiu os animais de estimação. Não sobrou nenhum peixinho dourado para contar a história. Aqui, pet-shops fechariam as portas e passeadores de lulus perderiam o emprego. Mas com a grana da ração para bichos caseiros daria para arrematar o Campo de Libra. Embora o camarada Mao também determinasse que cada casal tivesse apenas um filho, política ainda vigente na China, o povo continuou a crescer, e a comida, a faltar.

A superação teria de ser radical — que a Humanidade aja de fato como espécie e ache o seu lugar na natureza, sem explorar seus membros e a outros animais. Que a Pré-História acabe e o homem deixe de ser ególatra, indivíduo. O Eu não é apenas detestável, ele não tem lugar entre o Nós e o Nada. No neolítico, o homem conhecia o fogo, rudimentos da agricultura e se protegia do frio. Aquele tempo não ficou para trás de todo, ele reaparece na simpatia pelos beagles. Como disse Lévi-Strauss no fim de “Tristes Trópicos”, esse tempo existe nos breves intervalos em que nossa espécie suporta interromper seu labor de colmeia e busca a essência do que ela foi e continua a ser, aquém do pensamento e além da sociedade: na contemplação de um mineral mais belo que todas as nossas obras; no perfume, mais sábio que os nossos livros, respirado no coração de um lírio; ou na piscada pesada de paciência, de serenidade e de perdão recíproco que um entendimento involuntário permite às vezes trocar com um gato.
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* Colunista do Jornal o Globo. Jornalista e escritor.
Fonte: O Globo on line, 24/10/2013
imagem da internet

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