José Tolentino Mendonça*
As grandes alterações não se fazem sem
custo. A somar a ganhos há sempre perdas, crepúsculos antecipados,
parcelas omitidas, ausências e silêncios que depois pesam. Isso parece
inevitável. A questão é saber como lidamos com o que se perde. Com que
grau de consciência observamos a vida, a nossa e a dos outros. E se nos
conformamos ou não com lógicas implacáveis de substituição, ousando,
pelo contrário, dinâmicas de reconhecimento e de reintegração, Talvez a
utopia mais necessária esteja aí. Talvez a utopia não seja
simplesmente uma pergunta feita ao futuro, mas sim uma interrogação
sobre o modo como os nossos passados, remotos e próximos, podem ser
convocados para um presente que aceite o risco da inteireza como lugar
possível da sua reinvenção.
Imaginemos, por um momento, o processo
complexo que foi a adaptação das sociedades orais à escrita. Em
"Fedro", de Platão, há um curioso debate que o ilustra. O que é tido
como o mitológico inventor da escrita, o deus egípcio Theuth, garante
ali entusiasticamente que ela tomará os homens mais sábios e lhes
desenvolverá a memória O rei Thamus, que o escuta, contraria esse
otimismo, defendendo o oposto: que a escrita produzirá esquecimento. Os
homens deixarão de exercitar a memória por causa da confiança nos
carateres escritos, e não vão eles próprios praticar a lembrança
interior. E conclui: «Tomar-se-ão muito informados e terão a aparência
de quem sabe de várias coisas, quando na verdade serão ignorantes e de
difícil convívio».
Hoje ninguém duvida dos benefícios da
escrita e de que ela constituiu uma alavanca histórica de primeira
grandeza. As sociedades orais, contudo, haviam desenvolvido formas de
sabedoria, em parte perdidas, que seria importante recuperar. Um
exemplo importante tem a ver com a arte de contar. Somos uma sociedade
de leitores/recetores mais do que de narradores, e esse desequilíbrio
sente-se. A maior parte do conhecimento que produzimos está infelizmente
desligado da experiência. O narrador, porém, toma aquilo que narra da
experiência e transforma-a em experiência para aqueles que escutam a
sua história.
Num dos seus livros, Martin Buber conta
esta hístóría inesquecível: «O meu avô estava já paralisado. Um dia
pediram-lhe para contar uma história, uma história que ele tivesse
vivido com o seu mestre. Então ele contou como esse homem santo que era
o seu mestre
tinha o costume de saltar e dançar enquanto rezava. E ao contar isto a
meu avô levantou-se, e o relato envolveu-o de tal maneira que ele
começou a saltar e a dançar para mostrar como o seu mestre fazia. Desde
esse instante ficou curado».
Hoje voltamos a habitar uma grande
alteração: da escrita passamos para a eletrónica. E não se trata só de
tecnologia. Estamos a inaugurar uma nova forma de organização da
experiência humana, menos estática do que a escrita, muito mais
instantânea, global, acessível, envolvente. Não é por acaso que tem
como grande metáfora a rede. Porém, há dimensões importantes que ficam
ameçadas e passamos a ter prova disso no nosso dia a dia. Profetizou
McLuhan: «Na era do funcionamento em circuito, as consequências de
qualquer ação ocorrem ao mesmo tempo do que esta».
Uma das coisas que nos arriscamos a
perder é, assim, o distanciamento, a margem de tempo e de liberdade tão
necessárias à ponderação. A expetativa é de que tudo flua sem pausas.
Fala-se muito da urgência de fazer uma gestão eficaz da informação.
Urgente, porém, seria reconhecermos que precisamos de tempo e de
solidão para dormir sobre os assuntos. Muitas vezes, a almofada é melhor
conselheira do que o ecrã.
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* Escritor português. Poeta. Teólogo
Pintura de Paul Klee
Fonte: InExpresso, 10.10.2013
Fonte: InExpresso, 10.10.2013
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