Aldo Castañeda carrega na fala mansa e nos gestos pausados a experiência de quem se tornou, em 50 anos de carreira, referência mundial em cirurgia cardíaca infantil. Ex-chefe do Hospital da Criança de Boston e da Escola de Medicina da Universidade de Harvard, dedica-se hoje à fundação que leva seu nome, na Guatemala. Trocou a aposentadoria confortável pelo trabalho gratuito para diagnosticar e operar crianças pobres com malformações cardíacas. O médico arregala os olhos ao revelar as estatísticas: enquanto em Boston o diagnóstico de crianças com este tipo de problema chega a 98% dos casos, na Guatemala patina em 26%.
Aos 83 anos, Castañeda veio ao Estado para palestrar em um congresso na Serra e no Hospital da Criança Santo Antônio, da Santa Casa, em Porto Alegre. Falou de medicina e, claro, contou a história de uma vida movimentada. Nascido em Gênova, de pai guatemalteco e mãe nicaraguense, publicou mais de 400 artigos. Na entrevista a seguir, ele propõe uma espécie de revisionismo na relação médico-paciente – especialmente devido à evolução tecnológica dos tratamentos.
Como o senhor foi tratado ao chegar à Guatemala?
Nasci na Itália e fui educado durante a II Guerra, na Alemanha. Estive pela primeira vez na Guatemala, com 20 anos. Meu pai nasceu lá. Então, fiz a escola médica na Guatemala. Eu lia os jornais profissionais americanos. Fiquei muito interessado pelo coração, o último órgão a ser explorado por cirurgiões. Na escola médica na Guatemala, fiz alguns experimentos com cães. E isso provavelmente me ajudou a ser aceito em Minesota. Acho que provavelmente algo da minha tese os intrigou por ser de alguém da Guatemala. De qualquer forma, preparei-me para uma carreira acadêmica, para pesquisar e ensinar. Consegui um PhD, virei professor assistente e professor. E, quando o chefe do Hospital Infantil de Boston se aposentou, selecionaram-me. Fiquei lá por 23 anos. Uma das coisas esplêndidas que fizemos foi operar corações de recém-nascidos. Fizemos muitos experimentos.
O que o levou a, depois de aposentado, voltar para a Guatemala?
Retirei-me de Boston e fui para a Suíça. Depois de três anos, voltei para a Guatemala. Lá, vi que não havia nada feito para quem não pudesse pagar uma viagem médica aos EUA. Eram 2% da população com esse dinheiro. Os pobres não tinham chances de diagnóstico e tratamento. Então, organizamos uma Fundação (Aldo Castañeda), encontramos dinheiro e desenvolvemos um programa. Hoje, temos todos os tipos de cirurgia pediátrica cardíaca, e funciona muito bem. Fazemos de 400 a 500 casos por mês. Até agora, operamos 4,8 mil. Treinamos gente vinda de diferentes partes do mundo. Uma delas é a doutora Laura Barbosa, do Brasil (ela o acompanhou na Capital).
Como nasceu a ideia?
Foi em 1995. Vi que poderia ser útil trabalhando pro bono (sem honorários) e me dediquei a construir a unidade na Guatemala. Encontramos dificuldades. A América Latina é difícil.
Como foi o início?
Muito difícil, porque... Bem, o governo não estava interessado. Todos os prédios, equipamentos, mobília, tivemos de conseguir pela Fundação e por alguns filantropos da Guatemala. Arrecadamos cerca de US$ 4 milhões. Funciona bem, mas cobrimos somente cerca de 26% dos casos que deveríamos cobrir. Ainda temos um longo caminho. Não sei os dados do Brasil...
Qual deve ser a rapidez no tratamento de crianças com problemas cardíacos?
O ideal é diagnosticá-las o mais cedo possível, nos primeiros meses de vida. Nos seis Estados da Nova Inglaterra (nordeste americano), capturamos 98% das crianças nascidas com problemas. Na Guatemala, só 26%.
Como se fala com os pais de uma criança com problema cardíaco?
A maioria das mães nem sabe que pode haver algo no coração do bebê. Ao dar à luz, alguém conta. É um golpe enorme. Eu sento, explico como se formam as malformações. O coração humano está formado ao final de dois meses de vida intrauterina. Qualquer malformação acontece neste prazo. Já no útero pode começar a haver dano. E muitos dos abortos espontâneos são por malformação congênita séria. A conversa com os pais depende do grau educacional deles. Tem de se moldar o trato. A maioria aceita. Eu tomava meia hora para falar. Fazia desenhos para entenderem a lógica. Só dizer que tem de operar é desumano. Este tipo de médico (que explica) não é abundante. Talvez abundem os menos humanamente preocupados com o paciente.
O que as escolas de medicina podem fazer para uma relação mais humana com os pacientes?
Em geral, as escolas de medicina seguem o passo da evolução da área. Por exemplo, na história da medicina se perdeu algum interesse. Talvez as escolas estejam um pouco negligentes. Deveriam enfocar mais a parte humana, da relação médico-paciente.
O senhor concorda que, por vezes, os médicos têm dificuldade para fazer com que os pacientes cumpram as prescrições? O que fazer para evitar isso?
Recuperar a relação com o paciente. Claro, é preciso ser um pouco psicólogo. Cada um tem um jeito diferente. Um professor de matemática é diferente de um camponês, que tem menos educação. Alguns médicos têm mais talento, mais capacidade para isso. Por exemplo, tive experiências de ter feito operações muito grandes de coração, e outra por um câncer. E essa foi uma experiência muito importante porque, de repente, eu estava do outro lado, onde nunca havia estado. Aí, me dei conta de que existem outras deficiências, e as pessoas têm razão. Algumas delas são muito exageradas. Mas você tem razão: sim, perdeu-se a relação médico-paciente. Digo aos jovens que trabalham comigo que eles estão perdendo muito ao não responder às necessidades do paciente de conversar. É preciso entender o ambiente no qual se move o paciente, a relação da enfermeira, como ele é afetado. Ao mesmo tempo, aprende-se mais sobre a patologia. É como uma história de detetive, de certo modo. Pode haver muita vantagem em conhecer melhor um paciente.
Tenho uma pergunta de meu pai, que é cardiologista. O que mudou na relação médico-paciente a partir da evolução tecnológica? Não se perdeu essa ligação?
Há fotos de médicos sentados ao lado da cama do paciente. Isso, psicologicamente, é importante, mas não sabiam o que estavam dizendo. Ou não sabiam o diagnóstico. Aí, a medicina progrediu por tecnologia, diagnóstico e tratamento. O médico perdeu sua posição por autoculpa e pelas circunstâncias. A medicina se desumanizou um pouco. Estou de acordo com o seu pai.
Essa desumanização acaba sendo pior para quem?
Depende. Pode haver um médico que lhe agrade e não saiba o diagnóstico. Ou um selvagem que vá curar você. Há os dois lados. Há de se encontrar alguém com humanidade que saiba utilizar ao máximo a tecnologia para o bem do paciente. Creio que a tecnologia afastou o contato do paciente com o médico. Mas acredito que as escolas de medicina deveriam enfatizar um pouco mais a parte humana. Claro, é preciso respeitar os avanços tecnológicos, hoje existe uma medicina melhor. Mas há uma história importante que, em partes, perdeu-se. Isto é uma lástima.
O senhor citaria algum modelo de saúde pública que considera bom?
Não sou expert, mas, agora que estou na Guatemala, me parece que na grande maioria do Terceiro Mundo o que se chama de saúde pública não é um problema inicialmente médico. Por exemplo: desnutrição. É um problema sócioeconômico, cultural. Vira um problema secundário médico, não primário. Algumas enfermidades são deficiências das condições de vida: não existe água potável...
Não há infraestrutura...
Na Guatemala, por exemplo, há uma população primariamente pobre.
Isso passa pelos governos, então?
O orçamento do governo na Guatemala vai muito para a saúde pública, mas é mal aplicado. Existem casas sem água potável, banheiros... As pessoas saem descalças. Os parasitas podem entrar pelos pés. As pessoas são tratadas no hospital, mas regressam para o mesmo ambiente de casa. E voltam ao hospital. É um círculo vicioso. É preciso melhorar as condições de vida, os salários, os postos de trabalho. Repito, não sou especialista. Mas o Terceiro Mundo sofre disso. E a extrema pobreza leva consigo uma patologia própria, que afeta toda a família. Na Guatemala agora há meninas grávidas aos 14 anos no nosso hospital, e algumas já estão no segundo filho. A maioria é vítima de incesto. É gravíssimo. Não sabíamos: achávamos que era a irmã maior que estava cuidando da criança, não a mãe. É um desastre.
Apesar dos problemas, o Brasil tem um sistema de saúde universal e gratuito. Já, nos EUA, é preciso pagar...
Estive por 43 anos nos EUA, entre Minnesota e Massachusetts. Vou dizer sinceramente: em todos esses anos, nunca vi uma criança que necessitava de uma cirurgia não a conseguir por falta de dinheiro. Alguém pagou. Mas há um segmento da população... Por exemplo, uma família de cabeleireiros de Minneapolis. Tinham férias e viviam bem, de classe média, numa casinha com flores. O marido ficou doente, de câncer do estômago. Faz muitos anos. Não tinham seguro. Antes que o Estado ajudasse a pagar, tiveram de vender a casa. Entende? Isto está mal.
O governo brasileiro afirma que faltam médicos nas cidades menores. Há muita polêmica, especialmente na classe médica, que não quer que estrangeiros, cubanos, venham trabalhar aqui...
Na Guatemala há um pouco disso. Não sei se você sabe isso, mas entre as melhores universidades do mundo, a América Latina só tem duas: São Paulo (Universidade de São Paulo) e Unam (México). O Brasil é o melhor país da região. Fui consultor de Cuba. Esse grupo de Castro... Na parte da política não vou me meter. Desenvolveram muito bem a saúde pública. Excelente. Creio que é a melhor da América Latina. Mas a parte de especialidades não está bem. Assim, os médicos que vêm das escolas de medicina cubanas têm uma base muito boa em saúde pública, mas nas especialidades não é o mesmo nível. Têm um problema de se incorporar. Na Guatemala, a escola de medicina é péssima.
Aqui é preciso falar português e revalidar o diploma para registro permanente.
Houve guatemaltecos estudando em Cuba. Eles tiveram de regressar e fazer um ano a mais. Isto melhorou o nível, e há menos fricção.
O que lhe parece a ideia de doutores estrangeiros?
Vocês não precisam. Estão bem.
O senhor viveu a II Guerra Mundial na Alemanha. O que essa experiência mudou em sua vida?
Eu tinha nove anos quando começou, sabia o que estava acontecendo. Afetou-me. Sou antimilitar e não acredito em guerras. A guerra brutaliza o ser humano, 100%.
O senhor tem uma carreira brilhante e trabalhou de graça na Guatemala. Humildade é um desafio para os médicos?
Os que acham que são muito bons não necessariamente são tão bons. Conheço vários prêmios Nobel que posam de humildes e simpáticos, mas não creem na divina graça.
O senhor ainda opera?
Já me aposentei. Tenho 83 anos. Deveria estar debaixo da terra.
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carlos.ferreira@zerohora.com.br
Reportagem por CARLOS GUILHERME FERREIRA
Fonte: ZH on line, 26/10/2013
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