Marcelo Coelho*
Os contos da escritora prêmio Nobel são como piadas de humor negro, só que sem humor nenhum
Coisas horríveis podem acontecer na vida de qualquer pessoa, como
sabemos. Sabemos também que, depois de um tempo, uma tragédia termina
sendo "metabolizada" (para usar um termo da moda), ainda que nunca se
supere de fato.
Parece ser esta a matéria-prima dos contos de Alice Munro, que acaba de
receber o Prêmio Nobel de Literatura. Vou lendo seu livro mais recente,
"Dear Life", a ser lançado em português pela Companhia das Letras.
É preciso ter bons nervos. Uma jovem mãe cede ao impulso de fazer amor
durante uma viagem de trem. Deixa a filhinha num vagão, dormindo, bem
quietinha, claro, e vai ao encontro do rapaz em outro vagão. Quando ela
volta para ver a filha... xiii... O leitor já sabia, é claro, que boa
coisa não iria acontecer.
Em outro conto, a personagem principal é uma menina pequena. Ah, ela tem
uma irmã mais velha. A mãe se separou há pouco do marido, e vive num
trailer, a meio caminho entre a cidade e o mato. Estamos no Canadá. Há
lobos no lugar. Também faz frio. O degelo cobre de água uma cratera, de
onde se extraem pedregulhos de construção.
Uns 20 pés de profundidade, especifica Alice Munro. A cachorrinha da
família parece que entrou na água; não sabe nadar direito. A menina mais
velha acha que sabe. Vai tirar a cachorrinha do poço. Hum, a menina
está com roupas de inverno. Xiii...
Não estrago as surpresas da história, se é que existem, porque de
qualquer modo outras coisas acontecerão, e nem todas acabam acontecendo.
Mas com isso já se tem ideia do tipo de visão que Alice Munro pretende
transmitir.
A ideia é explorar o passado como trauma. Para evitar a violência
extrema das situações narradas, a autora recorre a uma estratégia de
velamento. Ou seja, as pessoas não se lembram direito do que aconteceu,
as coisas são contadas muito aos poucos, a aparente "ininteligência" do
narrador infantil é reproduzida na escrita.
Evita-se, corretamente, que o leitor receba o impacto direto de uma
revelação trágica; vai deduzindo por si mesmo tudo o que aconteceu.
Com isso, embora a narrativa se estenda por poucas páginas, o tempo subjetivo da história se torna lentíssimo, angustiante.
É uma espécie de câmera lenta emocional. Enquanto a dona de casa vai de
um vagão a outro, cenas de seu casamento anterior, problemas
profissionais ou domésticos vão sendo rememorados --como se a autora
estivesse pronta a escrever um romance inteiro.
Só que, debaixo da largueza, da ociosidade desse fluxo de associações e
memórias, os fatos reais estão acontecendo, e a tragédia se tece para os
personagens.
São em geral mulheres a caminho da meia-idade, vivendo a vida sem graça
de alguma cidadezinha canadense depois da Segunda Guerra Mundial,
vagamente a par das tensões entre Estados Unidos e Rússia.
A ameaça nuclear já sumiu do horizonte contemporâneo, sem dúvida, mas o
trauma dos atentados de 11 de Setembro justifica mal ou bem o clima
sinistro.
Para este leitor brasileiro, entretanto, saltam aos olhos os sinais de
artificialidade na escrita. Parece aqueles filmes baseados em histórias
de Stephen King: num agradável bairro suburbano, com suas calçadas
limpíssimas e gramados perfeitos, uma criança passeia de bicicleta.
Sol, primavera, "tudo normal". A trilha sonora, entretanto, já está
produzindo seus zumbidos graves e inquietantes. Estamos avisados.
O sentido do trágico se perde, e é substituído por outra coisa: o
aziago, o agourento, o ominoso. Os contos de Alice Munro são como piadas
de humor negro, só que sem humor nenhum. Assume-se, para efeito de
profundidade e desencanto, que tudo ocorre num universo sem Deus. Várias
denominações religiosas protestantes voejam, como moscas, em volta dos
personagens mais mortos do que vivos.
A falta do Pai, do Filho e do Espírito Santo não ganha muito, todavia,
quando a autora apela ao simples Espírito de Porco. "Naquela época nós
morávamos perto de um buraco de pedregulhos..."
Depois de meia dúzia de mortes e acidentes, o leitor sabe que essa
descrição não está ali por acaso, e a suposta inocência de quem narra a
história se compromete duplamente.
Tem de ser criança para que o horror apareça de forma velada. Tem de ser
bastante adulta para reorganizar a experiência. O resultado é que
muitas vezes os personagens de Alice Munro parecem pouquíssimo
inteligentes; propostas de casamento, ameaças de chantagem, negócios
imobiliários se sucedem com o óbvio intuito de produzir sofrimento. E de
dar ao leitor a imagem de uma escritora desencantada e profunda.
Alice Munro ganhou o Prêmio Nobel. Bem, não é caso para maiores alarmes. Coisas bem piores podem acontecer.
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* Colunista da Folha
Fonte: Folha on line, 16/10/2013
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