As manifestações de junho foram objeto de muitas interpretações, mas a
primeira a ser publicada como livro foi "Choque de Democracia: Razões
da Revolta", lançada em e-book pelo filósofo e cientista político Marcos
Nobre, professor da Unicamp e pesquisador do Cebrap. Quando os
manifestantes saíram às ruas, ele trabalhava em um livro mais amplo,
destinado a interpretar os últimos 30 anos pela perspectiva de seu
conceito de "pemedebismo".
"Imobilismo em Movimento" (Companhia das Letras, 208 págs., R$ 36)
trata do período da redemocratização, com a formação do chamado
"Centrão", o mito da governabilidade que se estabeleceu após a queda de
Fernando Collor, os períodos dos presidentes Fernando Henrique Cardoso e
Luiz Inácio Lula da Silva e o início do governo Dilma Rousseff. No
último capítulo, figura a tese, já presente no e-book, segundo a qual o
que ocorreu em junho foi uma explosão do sentimento de que se tornou
insuportável o descompasso entre o funcionamento do sistema político e
as aspirações da sociedade, que, em oposição ao antigo
nacional-desenvolvimentismo, Nobre denomina "social-desenvolvimentismo".
"A ideia é expandir a perspectiva sobre o período
pós-redemocratização, para sistematizar a experiência de quem não viveu a
ditadura e a hiperinflação", diz Nobre. A motivação para o recorte de
leitura foi uma investigação sobre o "conservadorismo à brasileira".
Encasteladas no sistema político, não escapam inteiramente desse
conservadorismo nem as novidades do cenário político, como a aliança
entre Marina Silva e Eduardo Campos e a ascensão da nova geração de
políticos.
Valor: O senhor usa o termo "pemedebismo" há anos. Como foi a cunhagem desse conceito?
Marcos Nobre: A ideia do pemedebismo me veio em
2009, quando ficou claro que existe uma cultura política que domina o
sistema e é fundamental para entender o conservadorismo brasileiro. Há
um argumento, partilhado pela direita e pela esquerda, de que a
sociedade brasileira é conservadora. Isso legitimou o conservadorismo do
sistema político: existiriam limites para transformar o país, porque a
sociedade é conservadora, não aceita mudanças bruscas. Isso justifica o
caráter paquidérmico da redemocratização e da redistribuição da renda.
Mas não é assim. A sociedade é muito mais avançada que o sistema
político. Ele se mantém porque consegue convencer a sociedade de que é a
expressão dela, de seu conservadorismo. Na Constituinte, em 1987 e
1988, nunca se viu tamanha participação da sociedade. A elite
conservadora entrou em pânico, temendo um processo incontrolável de
democratização. Toda a história republicana brasileira é a de colocar
obstáculos para a democratização da sociedade.
"A sociedade é muito mais avançada que o
sistema político.
Ele se mantém porque consegue convencer
a sociedade de
que é a expressão dela"
Valor: O pemedebismo pode ser entendido como a versão pós-redemocratização de um modus operandi tradicional no Brasil?
Nobre: Há parentescos com outras formas do
conservadorismo na história, mas agora é um conservadorismo na
democracia. A origem está no fato de que a ditadura militar estabeleceu
dois partidos, juntando correntes antagônicas dentro do MDB. O
bipartidarismo forçado levou à constituição desse sistema de vetos,
obrigando correntes diversas a conviver dentro da estrutura partidária.
No século XX, foram 19 anos de democracia, mas com partidos postos na
ilegalidade, tentativas de golpe. Ninguém vive 21 anos de ditadura
impunemente. É só manter um regime democrático durante um tempo mínimo,
que a democracia aprofunda. O que acontece com 30 anos de democracia num
país? As pessoas saem na rua. Como um sistema político elitista lida
com isso? Se a democracia permanecer, o pemedebismo tem data para
acabar. Mas isso envolve uma série de reformas institucionais. Vai ser
preciso garantir para uma oposição de verdade as condições de sobreviver
e reproduzir seus quadros fora do governo. É encontrar base social e
institucional para que uma oposição possa se organizar.
Valor: O senhor diz que o ímpeto reformador dos
anos 1980 foi canalizado para o PT, que depois abriu mão dele para
ocupar o pemedebismo pela esquerda...
Nobre: O PT votou contra a Constituição em 1988, mas
assinou. Cinco anos depois, defendeu-a com unhas e dentes contra a
revisão. Por que uma mudança tão rápida? Por que Lula, em 1989, chegou
ao segundo turno com 16,08% dos votos. As forças sociais foram se
organizando em torno do PT. Não havia, antes, uma frente unida de
movimentos, tanto é que o "Centrão" conseguiu barrar muita coisa. O PT
ocupou esse lugar porque o governo Fernando Henrique propôs uma
acomodação ao sistema: deixou-o funcionando como estava, mas dirigindo-o
para transformações econômicas. Estabeleceu dois polos, com o PSDB de
um lado e o PT do outro. No meio, o pemedebismo. Quando Lula chegou ao
poder, as forças sociais tinham duas missões. A primeira, reformar o
sistema político. A segunda, reduzir as desigualdades. Em 2005, Lula
avisa que não pode fazer as duas coisas. Para reduzir as desigualdades,
tem de fazer um pacto com o sistema. E foi tão bem-sucedido que o outro
polo desapareceu.
Valor: E o que aconteceu com aquele ímpeto?
Nobre: Ele ficou claro nas revoltas de junho: há um
descompasso entre a cultura política democrática da sociedade e o
sistema político. A sociedade é bem mais polarizada que o sistema e não
vê sua polarização refletida nele. As pessoas ficam chocadas pela
agressividade dos protestos de junho, pela quantidade de opiniões
divergentes. Mas democracia é isso. O medo da polarização é um mito
antigo e conservador. A polícia exerce violência brutal na periferia. No
ano passado, tivemos 1.300 políticos assassinados, além de líderes do
Movimento Sem-Terra. A polarização está no cotidiano das pessoas no
sentido mais brutal da palavra. Polarização faz parte da democracia e as
pessoas aprendem a conviver com isso. É na discussão que se criam
regras da convivência. Não tem outro jeito, senão a velha repressão.
Valor: Existe algo desse impulso nos 20 milhões de votos de Marina Silva em 2010? A Rede Sustentabilidade incorpora parte dele?
Nobre: A ausência de identificação de polarizações
reais se reflete em válvulas de escape eleitorais. Marina chegou a um
nível de votação em 2010 que é mais que isso. Quando Lula desligou a
polarização, ficou só um condomínio pemedebista com o PT como síndico. E
a oposição passa a ser gestada de dentro do governo: Marina veio do PT.
Se todo mundo está dentro do governo, a oposição também está. Como
Eduardo Campos. Essa votação virou um movimento que agitou a base da
sociedade. E é um movimento dirigido para o sistema político. As
organizações inovadoras das revoltas de junho, como o Movimento Passe
Livre, Comitês Populares da Copa e outros, não são dirigidas ao sistema.
Falam para a sociedade, a partir da sociedade. A Rede foi o primeiro
movimento com base social efetiva dirigido ao sistema político.
Valor: A aliança Marina-Campos representa uma modificação importante desse sistema?
Nobre: A questão é se vai significar repolarização. O
sistema pode ser polarizado e ainda assim permanecer pemedebista, como
foi no governo Fernando Henrique. Mas repolarizar é essencial para que o
sistema represente politicamente um mínimo das polarizações sociais. Já
seria um passo importante. Vai acontecer? Vamos ver em 2014. Ao menos, a
pasmaceira vai se mexer um pouco. O que precisa ser mudado no longo
prazo é a cultura pemedebista, voltar a ter situação e governo. Não é
possível um sistema político em que todo mundo é governo, seja qual for o
governo. Não tem democracia saudável se for assim. É o conservadorismo
brasileiro.
Valor: Quando Marina Silva, com mensagem
ambientalista, teve 20 milhões de votos, o movimento seguinte do governo
do PT foi se aliar ao ruralismo.
Nobre: Essa é a grande novidade do governo Dilma. O
ruralismo sempre foi hostil ao PT. O governo Lula fez de tudo pra
atrai-lo. Agora, a aliança se consolidou, justamente porque Marina está
do outro lado. Isso é o pemedebismo: quando um partido abre mão de
bandeiras históricas para fazer um acordão com o sistema. Certamente,
Campos aceitou que Marina afastasse Ronaldo Caiado da aliança, mas não
vai aceitar que afaste o ruralismo enquanto tal. Se setores ruralistas
quiserem ficar na aliança, vão ficar. E Marina vai ter que engolir.
"As pessoas ficam chocadas pela agressividade dos protestos. Democracia é isso. O medo da polarização
é um mito conservador"
Valor: Que desdobramentos vê para as manifestações de rua?
Nobre: Uma pauta que veio para ficar é o papel da
polícia na democracia. Espero que seja possível reformar a polícia,
última instituição ainda não atingida pela redemocratização. Outro
elemento importante é a discussão sobre prioridades orçamentárias. O
sistema estabelece as prioridades orçamentárias, mas não são as da
sociedade. A resposta do sistema político às revoltas de junho foi uma
tentativa de usar as ruas para passar suas pautas. O governo tenta
passar pautas que são suas há tempos, como o Mais Médicos. O Congresso
diz que as pautas são as suas. E segue o cabo-de-guerra entre os dois
principais partidos da aliança, PT e PMDB.
Valor: O governo do Rio está aumentando as apostas, ao prender 70 pessoas de uma vez.
Nobre: É a aposta mais estúpida e antidemocrática
que um governo pode fazer. É a resposta de um governo acuado. Ficou
claro em junho que, quando a repressão se abatia, a manifestação
aumentava. Parte da motivação era garantir o direito de manifestação. O
sistema político, além de não nos representar, ainda bloqueia
manifestações com o braço repressivo. O caso Amarildo é emblemático. O
sistema aposta no apoio da população à repressão, mas houve a
movimentação para mostrar que a violência policial acontece todo dia,
mas não aparece. Esse jeito de funcionar da polícia é inaceitável. Não
acho que essa atuação antidemocrática tenha respaldo generalizado da
população.
Valor: O senhor anuncia a chegada de um pemedebismo repaginado e rejuvenescido. Como avalia a nova geração da política?
Nobre: Escrevi isso para falar da criação do PSD por
Gilberto Kassab. Há não só uma troca geracional em curso, mas o
pemedebismo incorpora elementos do social-desenvolvimentismo. Kassab,
quando prefeito, nunca desfez o que Marta Suplicy fez. É o pemedebismo
que reconhece que o social-desenvolvimentismo veio para ficar. A
diferença é a maneira como lida com a população. Continua sendo a
maneira tradicional de fazer política. A nova geração como um todo já
incorporou o avanço democrático. São pessoas que se formaram na
democracia. Mas são figuras pragmáticas: se acostumaram ao ambiente
pemedebista. Lula disse que não se faz política com o que se quer, mas
com o que se tem. O que temos é o pemedebismo. Para reformar o sistema
político, vamos precisar fazer política com o que se quer.
Valor: Tanto o centralismo quanto o federalismo
são apontados, em momentos diferentes, como fontes do pemedebismo. Por
que, hoje, o federalismo representa a possibilidade de reduzi-lo?
Nobre: Na década de 1980, a crise econômica,
associada à morte de Tancredo Neves, deu aos governadores um peso
enorme. A primeira coisa que Fernando Henrique fez para estabilizar o
país política e economicamente foi tirar poder dos governadores.
Centralizou recursos e fez uma renegociação de dívidas cruel. O aumento
da carga tributária de 25% para 32% foi distribuído desigualmente em
favor da União. Esse processo, fundamental para a estabilização, foi
usado por Lula para desligar a polarização. Os governadores são
dependentes do governo federal. Um elemento para existir uma verdadeira
oposição é dar mais recursos e autonomia aos Estados e municípios. Como
teremos uma democracia sem assembleias estaduais e câmaras de vereadores
ativas?
Nenhum comentário:
Postar um comentário