quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Pai, afasta de mim este 'cale-se'

 Cássio Roberto dos Santos Andrade*
 
Caetano, Gil e Chico são preciosidades brasileiras. Quem sai pelo mundo se entope de orgulho ao ouvir a voz nasalada de Chico em qualquer pedacinho habitado pelo homem, deixando todos encantados com a riqueza da arte que este gênio já produziu.

Nos anos de chumbo, a figura magra de Caetano se agigantava quando sua voz se erguia para cantar suas lindas poesias ou para gritar pela liberdade. Era a encarnação perfeita do É proibido proibir.

A melodia contagiante de Gil atravessou décadas dando o tom do bom gosto à música brasileira. Este baiano, que espelha a força da cultura e da intelectualidade negra, de tão coerente com as demandas democráticas, emprestou seu prestígio ao governo Lula como ponte a ligar o Povo ao Poder.

Por isso há um choque ao vê-los defender que suas biografias só possam ser escritas se houver autorização e participação nos lucros. Não se pretende discutir as questões legais, que serão decididas pelo Supremo e se resumem a duas linhas: há o direito à intimidade e à livre manifestação do pensamento e da cultura que devem ser harmonizados. O que causa perplexidade é a posição assumida por aqueles que simbolizaram a luta máxima pela liberdade. É como se Martin Luther King mandasse uma mensagem do além em defesa da desigualdade racial.

Uma nação se forma com a preservação de tudo o que é produzido pelo seu povo, gerando uma identidade no pensar, no sentir, no agir. Aqueles que se destacaram na produção dessa cultura devem ser estudados, pois representam as camadas que vão se sobrepondo a formar a estrutura, o elo, o sentimento comum que cimenta a essência de um país.

O artista vale pela arte que produz, mas necessita que ela seja reconhecida pelos seus apreciadores. Há um valor relevante que advém da curiosidade que o artista consegue atrair para si, o que o faz se expor constantemente ao encontro dos holofotes.

Os grandes criadores também vivem do dinheiro do público, valorando-se conforme a capacidade de atrair o interesse coletivo. A vida, a formação intelectual, o caráter, os caminhos e descaminhos de todos eles fazem parte da história do Brasil. Tudo isso, diga-se de passagem, diariamente retratado pela imprensa sem qualquer autorização para publicar. Naturalmente que, se houver ofensa à honra ou inverdades danosas, há os instrumentos criminais e de reparação financeira, que vigoram desde a idade das pedras.

Pesquisar, escrever, editar, publicar, divulgar são atividades penosas daqueles que passam anos trabalhando sobre determinado tema. É por demais mesquinho querer receber pelo trabalho alheio. Pior ainda é impedir que se revelem fatos de vidas tão extraordinárias. Mas se ainda assim quiserem censurar alguma passagem, que risquem este capítulo sombrio, que só veio apequenar a biografia de quem sempre teve a grandeza de levantar o cálice da liberdade, sem nunca aceitar um cale-se.
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* Cássio Roberto dos Santos Andrade, procurador do estado de Minas Gerais, é professor de direito do UNI-BH.
Fonte: Jornal do Brasil, 24/10/2013
imagem da Internet

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