Juremir Machado da Silva*
Fiz esta crônica para ler na abertura da Feira do livro de Camaquã, no Rio Grande do Sul, onde fui, cheio de honra e de alegria, patrono.
*
Resolvo pagar mico. Pode ser estimulante sair da zona de conforto sem
sair do bairro. Dou um passeio. Interpelo pessoas e faço uma pergunta
simples: por que ler? Tem sol. Faz mais de 20 graus. É primavera. Uma
leve brisa empurra as folhas de árvores frondosas. Porto Alegre está
linda. Alguns me reconhecem. Outros me olham desconfiados. Uma senhora
claudicante puxa a filha, uma moça loura sorridente, pelo braço e
“sussurra” alto:
– Só pode ser golpe.
Afastam-se apressadas torcendo o pescoço para ver se não as estou
seguindo ou se tem alguém caindo no meu conto. Sim, é um conto. O que
estou contando? Uma pequena história da leitura. Quem conta um conto
aumenta um ponto. Posso perder alguns. Mas eu estou contando a verdade. O
que é a verdade? O que as pessoas contam.
– Por que ler?
– Para se instruir – responde um homem de gravata.
Será culpa da gravata? Temo os homens que nunca se separam das suas
gravatas. São seres estrangulados. Podem, um dia, cortarem o nó. Será a
gravata que faz o homem de quem estou falando, por volta dos 40 anos,
tão sisudo, tão utilitarista, tão preocupado com o resultado? Ele não
está errado nem conta mentira. Ler instrui.
– Para me instruir eu estudo – diz uma guria.
– Estudar é ler – persevera o homem.
– É e não é – insiste a guria.
– É ou não é? – empertiga-se o homem da gravata vermelha.
– Ler quer dizer mais do que estudar. A gente lê para sonhar, viajar, fantasiar, ter prazer – explica a moça.
Está de saia vermelha. Comparo a saia dela com a gravata do homem. A
blusa dela é branca e com um generoso decote. Valeria escrever uma
crônica sobre o abismo que se insinua em direção a territórios
encobertos do seu corpo esguio. Não sou um escritor erótico. A minha
preocupação é a leitura. Conto só o que se deve contar.
– Leio para viver – é o que me diz uma dama toda de branco cuja idade não pode ser inferior aos 90 anos.
Examino sua figura frágil e vergada. Ele me sorri um sorriso cheio de
leituras dos tempos da Editora Globo. Pelos seus olhos passa a mulher
de 30 anos de Balzac, passa também uma Odete de Marcel Proust e, se não
me engano, se não forço o conto, passa Madame Bovary. Ela vê o que eu
vejo nos seus olhos e me olha com “olhos de ressaca”, não a ressaca da
Capitu, mas a doce ressaca dos belos anos, que desconheço, mas imagino e
já admiro.
– Leio para reviver – ela se corrige.
E se vai. Ainda me olha antes de dobrar a esquina. Penso que viveu,
no que poderíamos ter vivido, no que leu. Passa uma gata. Anda na
cadência da serpente que dança de Baudelaire, “belle d’abandon”. Penso
em abordá-la. Hesito. Ela vai achar que sou um chato, um tarado, um
golpista ou um cantador barato. Eu sou apenas um contador vira-lata
latino-americano que lê por paixão. Arrisco:
– Por que ler?
– Para iluminar o mundo – ela me responde.
Paro de escrever. Tudo isso eu inventei para ler. Quem conta um conto cai no seu canto. Ler é encantar-se.
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* Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor. Cronista do Correio do Povo
Fonte: Correio do Povo on line, 27/10/2013
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