Roberto Damatta*
Eles ainda eram cinco quando a tia solteirona e magra
viu a fumaça saindo da cabana que os sobrinhos tinham construído no
terreno baldio ao lado da casa onde moravam. Viviam na Belo Horizonte
dos anos 40 e, mesmo um bairro nobre da cidade, em torno do Minas Tênis
Clube, muitos lotes cheios de "mato" esperavam as construções que hoje
sombreiam a cidade. A turma de 12 meninos que os cinco irmãos
naturalmente atraíam havia construído as paredes de restos de caixote e
caixas de papelão, o telhado de folhas de bananeira e de galhos
arrancados dos arbustos.
Um muro servia como fundo e arrimo da tal cabana que saltava aos
olhos no meio daquele lote vazio. E foi essa construção torta que Tia
Amália viu pegando fogo - afinal onde há fumaça, há fogo! -, mas que aos
olhos dos meninos era uma confortável (porque possível) sala de fumar.
Com cigarros na mão e tragadas elegantes, eles brincavam de ser "homem"
e, entre os adultos, figurar os haveres da paternidade que um dia ia
sair dos seus sonhos e tornar-se tão dolorosamente real para alguns
deles.
"Pois é, dizia Romero, você pode comprar aquele meu terreno na
Pampulha..." Ao que Fernando respondia, pondo fumaça pela boca e sério
como um corretor: "Vou considerar!" Enquanto Ricardo e Renato ficavam
enjoados com o tabaco e Roberto, o cabeça, o mais velho e o sempre
responsável por tudo, preocupava-se com a fumaceira e em pagar ao
Lelinho - o único menino com coragem de ir comprar um maço de cigarros
Beverly Extra em nome do pai.
Quando a tia arrombou a porta da cabana e, escoltada por Dedé, a
cozinheira, descobriu o que chamou de "vasta patifaria", nós todos
voltamos à meninice e sentimos como o mundo da meninice é um universo
toldado pelos olhos do mundo, um mundo de adultos. A cabana não estava
em chamas. Ela apenas produzia a fumaça que denunciava o nosso "fumar
escondido", como fazíamos às escondidas um monte de outras coisas que
iam nos tornando o que seríamos como adultos.
*
O cronista de Cuzco, Garcilaso de la Vega, conta no seu livro,
Comentários Reais dos Incas, publicado na Espanha em 1606, um "conto
gracioso".
Um conquistador chamado Solar, residente em Los Reys (Lima), tinha
uma propriedade em Pachacamac. O capataz desta propriedade enviou ao
patrão, por meio de dois índios, dez melões - frutos das primeiras
sementes plantadas no Peru - e uma carta. Quando entregou a encomenda
aos índios, ele os advertiu que não comessem nenhum melão porque, se o
fizessem, a carta descobriria e os denunciaria. No meio da viagem, um
dos índios sentiu o aroma sedutor dos melões. Quis saber o seu gosto o
teve o desejo de provar a fruta do amo. Seu companheiro, temeroso, disse
que não deveriam fazer isso porque a carta iria contar. O cabeça
resolveu o problema colocando a carta atrás de uma mureta - pois, assim,
ela não poderia ver o que eles estavam dispostos a fazer e, sem vê-los,
ela não denunciaria o que estavam para fazer às escondidas.
A estas alturas, devo lembrar que esses índios do Peru não conheciam a
imensa tecnologia que chegou com a escrita, a qual inventou os
mandamentos, as leis, os contra-mandamentos, os embargos, as exegeses,
as receitas, os jornais, a literatura, a criptografia e a Agência
Nacional de Segurança dos Estados Unidos.
Eles imaginavam que as cartas que os espanhóis escreviam uns aos
outros eram mensageiros ou espiãs capazes de revelar o que encontravam
pelo caminho. As cartas eram concebidas como seres animados.
Comido o primeiro melão, os índios decidiram que era conveniente
emparelhar as cargas. E, assim, para ocultar o delito, comeram - com
gosto - outro melão. Chegados a Lima, apresentaram oito melões ao
capataz. Este, logo depois de ler a carta, os confrontou: "A carta fala
em dez! Vocês comeram dois melões na viagem. Vão levar uma sova por essa
malandrice!". Depois de muito apanhar, os pobres mensageiros
sentaram-se tristes na beira do caminho e um deles disse: "Viu, irmão?
Carta canta!" Ambos ficaram muitos impressionados com o poder dos
Conquistadores, os quais possuam essas "cartas" falantes, capazes de
descobrir o escondido.
*
Matamos Deus e somos escravos da técnica. Passei o sábado tentando
fazer funcionar uma impressora e, mesmo com uma ajuda decidida e
dedicada, não consegui. Nem sempre o que está no papel e nos planos do
usuário concretiza-se na sua relação com a coisa adquirida sem a figura
do intermediário. Um presidente americano disse que o negócio dos
Estados Unidos era fazer negócio. Hoje, dir-se-ia que é lutar a todo
custo e risco contra o terrorismo - coisa complexa porque a guerra se
faz entre países.
Como disse o escritor Philip Roth, com o gosto pelo desvelar que
passa longe de nós, em 1998, quando do escândalo Lewinski-Clinton, o
terrorismo substituiu o comunismo como a prevalecente ameaça à segurança
nacional somente para ser sucedido por um escândalo erótico. A vida, em
toda a sua desavergonhada impureza, confunde mais uma vez a América,
finaliza Roth.
Como meninos pegos fumando e peruanos ágrafos e loucos por melões,
mas denunciados por uma carta, a América da liberdade e do equilíbrio
entre o íntimo e o coletivo, entre o que se deve aos aliados e a si
mesma, é pega espionando o mundo. A tocha da Estátua da Liberdade foi
substituída por um iPhone.
-----------------
* Antropólogo. Escritor.
Fonte: Estadão on line, 30/10/2013
imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário