ROBERTO DAMATTA*
Todos sabem que os livros, os princípios, os mandamentos e todas as
nobres receitas podem ser fontes de desvios e loucuras. Eles são
escritos para iluminar, mas, em certos momentos, tornam-se obstáculos.
Quando cheguei em Harvard em 1963, um jovem instrutor
que tinha interesse num país obscuro e confuso chamado Brasil teve a
gentileza de me mostrar a universidade. Aqui morou Agassiz, ali
Galbraith, acolá Talcott Parsons, indicava meu anfitrião. Vi o Peabody
Museum, onde estudei e, finalmente, como uma apoteose, fui levado à
maior biblioteca universitária do planeta: a Widener Library, com seus
30 mil metros quadrados e seus 3 milhões de livros, que, mudos e
alinhavados em imensas prateleiras, formam um labirinto de 92
quilômetros. Essa é apenas uma parte dos mais de 16 milhões de volumes
do sistema de bibliotecas da universidade, explicou meu generoso guia.
Só fiquei tão impressionado quando fiz minha primeira comunhão, falei
com Lévi-Strauss e entrei na aldeia dos índios Gaviões pela primeira vez
nos idos de 1961. Naquela época, era o leitor quem localizava o livro.
Na Widener, encontrei toda a obra de Machado de Assis e uma coleção
completa dos Boletins do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
que usei na minha tese de doutoramento sobre a organização social dos
índios Apinayé.
No meio da visita, afastei-me do meu guia por alguns segundos, o
suficiente para me perder em meio às estantes. Encontrando-o um tanto
aflito um pouco depois, fui advertido. "Tome cuidado. Um aluno ficou
dois dias perdido aqui dentro e foi encontrado por acaso pela mais
antiga bibliotecária, uma certa Miss Page, cujo fantasma, dizem,
especializou-se em resgatar leitores cuja vida intelectual os leva a se
perderem em meio aos livros." Sorri com essa história semelhante a um
conto de Borges.
Todos sabem que os livros, os princípios, os mandamentos e todas as
nobres receitas podem ser fontes de desvios e loucuras. Eles são
escritos para iluminar, mas, em certos momentos, tornam-se obstáculos.
Ficar perdido numa biblioteca não seria um sinal de submergir nas ideias
que saem como vespas ou borboletas dos seus livros? Eis um paradoxo.
***
A primeira vez que ouvi a palavra "paradoxo" foi pela boca de meu tio
Silvio no telefone. Ele fazia uma complicada ligação interurbana e
encantou-se pela voz da telefonista. Como queria localizar um amigo, ele
disse perto de um menino curioso com uma memória literária: "Mas isso
não é um paradoxo? Estou procurando um amigo e encontro uma bela voz de
mulher!" Ouvi a palavra pelo menos quatro ou cinco vezes naquele
telefonema de alguns minutos, o qual terminou num encontro entre meu tio
e a operadora.
Aprendi, antes de ter lido o famoso livro do filosofo de Oxford, John
L. Austin, que as palavras também faziam coisas. Dias depois, soube que
a telefonista era feia e que o encontro fora, ele próprio, um paradoxo!
***
Nada mais paradoxal do que os arautos do impossível, mas poeticamente
utópico, desafiador e corajoso - "É proibido proibir" - proibirem
biografias. Quem vive do público e ganha do povo a simpatia que endeusa
naquilo que chamamos de "sucesso" não pode impedir que sua vida seja
lida de fora para dentro. Nisso, o contraste com os Estados Unidos É,
mais uma vez, flagrante. No Brasil, abundam as "memórias" nas quais o
ponto de vista é o do sujeito: a visão de dentro para fora. Nos Estados
Unidos, predominam as biografias - essas vidas contadas de fora para
dentro, geralmente decepcionantes para a autoimagem que os ricos e
famosos têm de si mesmos. Fiquei chocado com as novas biografias de
Thomas Jefferson ao saber que esse pilar do igualitarismo teve como
amante uma menor de idade, negra, escrava e criada de suas filhas.
Todas as vidas humanas contém paradoxos. Como aprendemos com Caetano
Veloso e talvez com Schopenhauer, "de perto ninguém é normal". Seria
isso um bom argumento para tornar a intimidade pessoal mais sagrada do
que a liberdade de escrever livremente sobre o outro - quem quer que ele
seja? Quem vale mais? A vida pessoal de quem deve tudo ao público ou a
liberdade de escrever? Os gênios morrem, mas a obra fica. Faz alguma
diferença saber que Kafka e Benjamin Franklin eram desorganizados e que
Cole Porter era gay? O mundo está repleto de gente desorganizada e de
gays que jamais serão Kafkas, Franklins ou Porters!
***
Eu moro em Niterói e já estou imaginando como vamos nos ligar à
Cidade Maravilhosa quando o viaduto cujas vigas de aço especial, feitas
para durar séculos, for derrubado. O sumiço de parte dessas vigas e as
três horas que levo de minha casa em Piratininga à PUC de carro
arrefecem o meu entusiasmo pelo progresso. Um dia, diz meu lado
malévolo, vou roubar a Ponte Rio-Niterói ou o Palácio do Alvorada.
Teremos um Porto Maravilha, sem dúvida, mas, paradoxalmente, banhado
pelas águas imundas da imensa sentina que hoje é a Baia de Guanabara.
Consolo-me com Vinicius de Moraes na sua poesia musicada que mais me conforta e comove:
"Às vezes quero crer mas não consigo
É tudo uma total insensatez
Aí pergunto a Deus: escute, amigo
Se foi pra desfazer, por que é que fez?
Mas não tem nada, não
Tenho o meu violão".
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* Antropólogo. Escritor.
Fonte: Estadão on line, 17/10/2013
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