sábado, 26 de outubro de 2013

Harold Bloom fala sobre sua 'autobiografia crítica'

Em novo livro, o crítico americano, 
de 83 anos, revê a própria obra e revisita autores que marcaram sua trajetória 
de leitor e professor
 
Filho de imigrantes judeus ortodoxos radicados em Nova York, no empobrecido Bronx, Harold Bloom desde cedo aprendeu a ler e admirar textos religiosos. Mas foi na biblioteca pública onde se refugiava na infância, nos anos 1930, que descobriu outro tipo de leitura: “a liberdade me acenou por meio dos primeiros poetas que amei”, escreve em seu livro mais recente, “A anatomia da influência” (Objetiva). Aos 83 anos, ele refaz nessa obra o percurso que o levou do deslumbramento juvenil com a poesia ao posto de um dos críticos literários mais populares do mundo.

O subtítulo de “A anatomia da influência” — “Literatura como modo de vida” — anuncia o balanço de uma existência em meio aos livros. Bloom revisita autores que marcaram sua trajetória de leitor, crítico e professor, da biblioteca do Bronx à Universidade de Yale, onde dá aulas há mais de 50 anos. Analisa textos de Hart Crane, Walt Whitman, Wallace Stevens, Yeats, Milton e, acima de todos, Shakespeare. Nesse percurso, revê também a própria obra, reconhecida pelos estudos sobre o autor de “Rei Lear”, pela ênfase em grandes nomes do cânone ocidental e por uma teoria original sobre a influência literária entre poetas.

— Este livro é meu trabalho mais importante, uma recapitulação de... céus! Quase 60 anos de trabalho. É um resumo do que tentei dizer ao longo da vida sobre as glórias da literatura ocidental. Cá estou eu, aos 83 anos, ainda lendo, escrevendo e dando aulas. Continuo a amar a poesia acima de tudo. Nunca escrevi um poema, mas creio que minha obra pode ser lida como um grande poema em prosa. Escrevo para evocar minhas experiências de leitura de autores sublimes — diz Bloom, em entrevista por telefone ao GLOBO.
 
Bloom concluiu seu doutorado em Yale em 1955 e começou a dar aulas no Departamento de Inglês da universidade no mesmo ano. Preferia poetas românticos dos séculos XVIII e XIX, como Yeats e Shelley, aos modernistas T.S. Eliot e Ezra Pound, que tinham enorme ascendência sobre escritores e críticos anglófonos da época.

Tornou-se mais conhecido a partir de 1973, com o lançamento de “A angústia da influência”, que considera até hoje seu livro mais importante. Nele, retratava a história da poesia ocidental como uma série de confrontos entre poetas “fortes” e “fracos”. E afirmava que um autor procede sempre por meio da “desleitura criativa” da obra de seus antecessores. “A história da influência poética frutífera”, escreveu, “é uma história de angústia e caricatura autocomplacente, de distorção, de revisionismo perverso e voluntário, sem os quais a poesia moderna enquanto tal não poderia existir”.

Uma resenha publicada ainda em 1973 no “New York Times” saudava essa teoria, com a ressalva de que ela podia causar “ultraje e perplexidade a muitos críticos, poetas e psicólogos”. O próprio Bloom brinca dizendo que, ao falar sobre “desleitura” nos anos 1970, era muitas vezes acusado de “favorecer a dislexia”. No novo livro, ele retoma o conceito e aproveita para refiná-lo. A retórica bélica com que descrevia a relação entre escritores, com foco na luta das obras pela “sobrevivência” ao longo do tempo, dá lugar a um tom mais sereno: “Defino a influência simplesmente como amor literário, atenuado pela defesa. As defesas variam de poeta para poeta. Mas a presença avassaladora do amor é vital para o entendimento de como a grande literatura funciona”.

— “A angústia da influência” era um pouco enigmático em certos pontos. Agora quero deixar claro que a influência literária é uma espécie de amor. Com todas as ambivalências do amor, claro, incluindo angústia, dúvida e ressentimento — diz Bloom, que dá uma risada ao ser perguntado se essa não seria uma mudança muito radical de perspectiva. — Meu querido, todo relacionamento amoroso é também uma luta. E quem fala é um senhor casado há mais de 50 anos com a mesma mulher...

Outra diferença entre o novo livro e o de 40 anos atrás é a presença de Shakespeare. A primeira edição de “A angústia da influência” não tocava na obra do dramaturgo, pois Bloom o considerava praticamente livre desse conflito. Uma nova edição, lançada em 1997, já anotava suas relações com o legado de Ovídio e Chaucer e com seu contemporâneo Marlowe. Já em “A anatomia da influência”, quase um terço das páginas é dedicado ao criador de “Macbeth”.

Autor de livros de referência nos estudos sobre Shakespeare, como “A invenção do humano” (1998) e “Hamlet: Poema ilimitado” (2003), Bloom pretende encerrar a carreira com um novo livro sobre ele, a ser lançado em 2016, quando se completam 400 anos da morte do dramaturgo. O título provisório é “Conhecendo Shakespeare”.

— Quero mostrar que, ao contrário do que acontece na obra de muitos dramaturgos, os grandes personagens de Shakespeare mostram a verdade sobre si apenas para si mesmos. O que provavelmente pode ser dito sobre muitos de nós — diz Bloom, enumerando outras lições de décadas de leitura. — Aprendi com Shakespeare que a vida humana é precária, que não podemos prever nem o que vai nos acontecer daqui a uma hora, e que as únicas coisas de valor no mundo são a inteligência, a beleza e o amor.

Bloom tenta transmitir essas lições a seus alunos de Yale, onde continua a dar apenas dois seminários de graduação: “Shakespeare e o cânone: histórias, comédias e poemas” e “A arte de ler um poema”.

— Dar aulas hoje significa tudo para mim. Quando você chega a uma idade como a minha ainda dando aulas, aprende a amar os estudantes de uma forma muito elevada.

Hoje um decano do campus, ele é remanescente de uma geração de professores e críticos de Yale que, a partir dos anos 1960, ajudaram a introduzir nos Estados Unidos as teorias de Jacques Derrida sobre a desconstrução. Momento marcante desse processo foi o livro “Desconstrução e crítica” (1979), que reunia textos do próprio Derrida e de acadêmicos de Yale como Bloom, Paul de Man e J. Hillis Miller. Mas nunca se considerou parte do grupo. Em “A anatomia da influência”, recorda as longas caminhadas com o amigo De Man, em que discordavam amistosamente sobre a natureza do ofício. Nesses passeios, Bloom defendia sua visão da crítica como a prática de “pensar poeticamente a respeito do pensamento poético”.

A partir dos anos 1980, diz Bloom, essa concepção de crítica ficou ainda mais deslocada na academia americana com a ascensão dos estudos culturais. O crítico que começou a carreira desafiando o “compromisso com o formalismo” da geração influenciada por Pound e Eliot passou a combater os colegas que “avaliam a literatura por critérios políticos, étnicos e outras bobagens do tipo”, provoca.

Bloom se diverte criando nomes debochados para batizar essas tendências críticas, como “Escola do Ressentimento” e “Novo Cinismo” (este um trocadilho em inglês com o termo “Nova Crítica”, corrente influenciada por Eliot na primeira metade do século XX). Para manter a independência, há muitos anos pediu desligamento do prestigioso Departamento de Inglês.

— Desde então tenho sido um professor sem departamento em Yale. Ou um departamento de um professor só — brinca Bloom, que no novo livro arrisca uma autodefinição para seu trabalho: “A crítica literária como tento praticá-la é em primeiro lugar literária, ou seja, pessoal e apaixonada. Não é filosofia, política ou religião institucionalizada. Em sua melhor forma, (...) é uma espécie de literatura de sabedoria e, logo, uma meditação sobre a vida”.
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Reportagem Por Guilherme Freitas
Fonte; jornal o Globo on line, 26/10/2013

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