Alfredo Monte*
O
Nobel ignorou a ficção de língua francesa, voltada para os rincões
rústicos—eivados de pulsões—,tal como vemos na obra de Anne Hébert
(1916-2000), e também a polimorfamente perversa reflexão (em língua
inglesa) sobre os vínculos da periferia (a ex-colônia) e o centro (o
Reino Unido) com os labirintos da condição feminina, da obra de Margaret
Atwood, para afinal distinguir, enfim, uma escritora do Canadá com uma
produção calcada na narrativa curta e que, no entanto, compartilha de
certas características comuns (ou incomuns) das duas grandes autoras
citadas, mais polivalentes quanto ao exercício de gêneros: Alice Munro.
Sim,
é verdade que o nome escolhido como vencedor em 2013 mostra bem a
vitalidade da tradição tchekhoviana, dos pequenos conflitos retratados
com consumada e compassiva maestria. Nem por isso deixa de haver um
toque que lembra outra praticante notável da forma curta, Flannery
O´Connor, indicando meandros e contornos mais “pesados”, por assim
dizer, na representação de incidentes e situações cotidianas, que são a
base para uma arte ficcional marcada pela síntese e pela economia[1].
O
leitor brasileiro teve a sorte de conhecer essa inquietante feição
dupla (tchekhoviana-flanneryana) de Alice Munro já no primeiro livro
dela traduzido em nosso país (por Cássio de Arantes Leite para a
editora Globo, e lançado em 2004): Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento [Hateship, Friendship, Courtship, Loveship, Marriage],
título que causa estranheza por sua rebarbativa sequência de
substantivos que, separada ou combinadamente, amiúde aparecem em títulos
de auto-ajuda e congêneres, mas que, aqui, tem a ver com uma ladainha
tipo unidunitê, executada por duas adolescentes no texto-título (o
primeiro dos nove contos longos que compõem essa coletânea de 2001):
“A
única boa ideia que Sabitha teve era escrever num papel o nome de um
garoto e o seu próprio, descartar as letras que se repetiam e somar
então as restantes. Depois elas contavam o número na ponta dos dedos,
dizendo, Ódio, amizade, namoro, amor, casamento, até recebe o veredicto
sobre o que poderia acontecer entre elas e o garoto”.
Esse
unidunitê do aleatório da vida (disfarçado no ritmo da ladainha) e das
escolhas que supostamente fazemos, é muito presente nas histórias
contadas por Munro, e equacionado com o peso emocional das pessoas na
vida dos seus personagens.
Dessa
maneira, ainda no conto-título, um dos jogos das duas garotas, Sabitha e
Edith, em sua efêmera condição de “melhores amigas” (até que as
diferenças de condição social se evidenciem, afastando-as[2])
leva ao núcleo anedótico do relato, que é a decisão da empregada do avô
de Sabitha de pedir demissão, para ir ao encontro do pai da neta de seu
patrão: no caso, um viúvo que tem tanto de aventureiro e sedutor quanto
de fracassado, e que sequer tomara conhecimento da existência dela;
porém, as meninas inventaram toda uma correspondência que aos poucos foi
convertendo a austera e parcimoniosa Johanna Parry (uma das maiores
personagens da ficção mais recente) em candidata a noiva.
Vamos
conhecendo as etapas da evasão de Johanna (junto com uma mobília a
qual, guardada por anos, é um ponto-chave na trama), aos poucos, e de
uma forma admirável, pois antes de sabermos a causa de todo o imbróglio e
conhecermos os demais personagens, travamos contato primeiro com a sua
peculiar personalidade (quando vai comprar a sua passagem de trem e
combinar os detalhes do transporte da referida mobília), numa impactante
cena inicial.
Nos
últimos parágrafos dessa pequena obra-prima, temos uma frase genial,
que indica o espírito travesso de Munro, a sua gota de veneno nos
licores de laranjeira (tal como sua colega dos EUA, Anne Tyler, mais
afeita ao romance). É relacionada a Edith, uma das parceiras no
unidunitê que envolve os destinos da até então solteirona Johanna e do
pai de Sabitha: “Pois onde, dentre a lista de coisas que planejava
conseguir em sua vida, havia qualquer menção ao fato de que seria a
responsável pela existência no mundo de uma pessoa chamada Omar?” .
Desde a Emma de Jane Austen, não víamos consequências tão divertidas (em
porções de deleite e de ridículo) a partir da interferência na vida
alheia.
Cada um dos nove textos tem seu próprio unidunitê. Em Urtigas,
a narradora abandona o primeiro marido e reencontra aquele que foi a
paixão da sua infância (também casado), durante visita a uma amiga, e
eles estacam no limiar de um relacionamento, afinal interdito devido a
todas as decisões anteriores, e sobretudo pelo medo de “estragar” a
magia dos jogos da infância (embora seja uma memória muito diferente
para cada um deles).
Quando
um empregado da pequena fazenda onde ela e a família viviam (e ele
estava de passagem, pois o pai executava um serviço temporário) “malda” a
convivência dos dois, e a mãe dela os defende: “Ela estava enganada.
O empregado chegara mais perto da verdade do que ela. Não éramos como
irmão e irmã, nem como nenhum irmão e irmã que eu já houvesse visto
(...) E não éramos como as esposas e maridos que eu conhecia, que para
começo de conversa eram velhos, e viviam em mundos tão separados que
pareciam mal reconhecer um ao outro. Éramos como um casalzinho íntimo e
vigoroso, cuja ligação não necessitava de muita expressão exterior.
Algo, pelo menos para mim, solene e emocionante”.
Anos depois, quando adultos (numa cena que justificará o título):
“Tão
perto um do outro que éramos incapazes de nos olhar (...) Mike liberou
meus pulsos e pousou as mãos sobre os meus ombros. Seu toque ainda era
para restringir, mais do que confortar.
(...) A chuva continuava a cair, mas já se tornara uma chuva pesada
qualquer. Ele tirou suas mãos, e ficamos de pé, tremendo. Nossas calças e
camisas estavam grudados no corpo (...) Tentamos sorrir, mas mal
tínhamos força para isso. Então nos beijamos e nos apertamos brevemente.
Isso foi antes um ritual, um reconhecimento de sobrevivência, mais do
que a inclinação de nossos corpos.”[3]
A condição de observadora de relações cristalizadas também é um componente da narradora de Queenie.
Ela, que, mais tarde, será uma professora com carreira, marido e
filhos, conta um episódio formativo, quando, ainda jovem, visita a
“irmã” (a Queenie do título, que agora quer ser chamada de Lena, para
não irritar o tirânico marido, com o qual vive numa espécie de cortiço)—
na verdade, a filha da mulher que casou com o seu pai—, a qual fugira
de casa para se casar com o antigo patrão (o sr. Vorguilla,
metamorfoseado em Stan]. O objetivo é conseguir um emprego de verão, mas
ela principalmente se dedica a observar o relacionamento de Queenie
(que se diz uma “criatura do amor”, reproduzindo—pensa a
narradora—clichês assistido nos filmes comerciais no cinema onde
trabalha) não apenas com o marido, mas também com os amigos dele:
“Meu
pai e Bet. Sr e Sra. Vorguilla. Queenie e o Sr. Vorguilla. Até mesmo
Queenie e Andrew. Esses eram casais, e cada um deles, por mais desunido
que fosse, tinha agora ou na lembrança um refúgio particular com seu
calor e tumulto, do qual eu ficava de fora. E eu tinha de ficar, eu
queria ficar de fora, pois era incapaz de ver qualquer coisa em suas
vidas que pudesse me instruir ou encorajar.”
Então, nessa altura da vida, há a disponibilidade., o unidunitê de um caminho indeterminado, um futuro cheio de possibilidades. O que lhe permite pensar: “Se
ao menos tivesse um quarto, pensei, Queenie teria um lugar para onde
fugir caso o Sr. Vorguilla ficasse fulo da vida com ela outra vez. E se
Queenie um dia decidisse deixar o Sr. Vorguilla (eu seguia pensando
nisso como uma possibilidade...), então com o salário de nossos dois
empregos quem sabe conseguíssemos um pequeno apartamento”.
Queenie,
de fato, inesperadamente “some”, largando o Sr. Vorguilla. E nunca mais
é vista. E então se torna uma peça irônica na engrenagem da vida futura
da narradora: ela, que era a que tinha dado o mau passo e “fechado” o
seu destino, ganha a aura de figura mítica, que pode estar em qualquer
lugar e ter qualquer vida: “nesses anos em que meus filhos cresceram
e meu marido se aposentou, e ele e eu viajamos um bocado, tenho a
impressão de que às vezes vejo Queenie (...)Certa vez, foi num aeroporto
lotado, e ela usava um sarongue e um chapéu de palha com adornos
floridos. Bronzeada e animada, parecendo rica, cercada de amigos. E
certa vez ela se achava entre mulheres na porta de uma igreja à espera
dos noivos e sua comitiva. Vestia uma jaqueta de camurça manchada e não
parecia próspera ou bem de vida...” No unidunitê da desaparição de
Queenie, as possibilidades multiplicam-se e contradizem-se, e ela
adquire uma condição nostálgica e poética.
Haveria muito o que explorar em Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento
no caminho dessas linhas de força em que o aleatório (unidunitê) e a
presença irrevogável de alguém formam uma espécie de dialética da
construção da memória do cotidiano e da trajetória de uma vida.
Para
atender a um propósito de brevidade, me restringirei aos dois contos
que considero mais bonitos do livro (uma façanha e tanto, diga-se de
passagem), mesmo enfatizando que o conto-título é uma obra-prima à
parte: Ponte Flutuante e The bear came over the mountain.
Ponte Flutuante
se inicia significativamente com o relato de uma ocasião em que a
protagonista, Jinny, quase largou o marido, Neal (um ativista sempre
lutando por boas causas, entre elas a reeducação de delinquentes
juvenis). Ela não leva seu intento adiante, mas o leitor já fica de
orelha em pé para as fissuras entre um casal cujo engajamento tem muito a
ver com uma obrigatória cumplicidade (e olhe que ele é bem mais velho
que ela):
“Alugaram
uma cama de hospital—na verdade, ainda não tinham necessidade dela, mas
fora melhor pegar uma assim que possível, porque em geral a oferta não
era grande. Neal pensou em tudo. Pendurou algumas cortinas pesadas que
haviam sido descartadas do salão de jogos de um amigo. Tinham uma
coleção de canecas de cerveja com tampa e objetos equestres de bronze
que Jinny achava muito feios. Porém ela sabia agora que havia épocas em
que o feio e o bonito serviam exatamente para o mesmo propósito, quando
qualquer coisa para a qual se olha é apenas um pino onde pendurar as
sensações descontroladas de seu corpo e os bocados e pedaços de sua
mente.”
Quando
Jinny é submetida à quimioterapia (com os estragos concomitantes), Neal
arranja uma moça desajustada para cuidar da casa. É no dia em que ela
começará a trabalhar e viver com eles que o relato se concentra. Tudo é
difícil e pesado para Jinny: o calor do dia, as decisões de Neal, que
fazem com que eles tenham de ir à dilapidada propriedade da família que
cuidava de Helen, a desajustada empregada, e com que ela tenha contatos
com pessoas desconhecidas, hospitaleiras até em demasia, enquanto sente
náuseas e uma terrível necessidade de solidão. Parece que o destino de
Jinny é ficar atada a esses “compromissos morais” (o marido, quando ela
recusa entrar na casa, lhe diz: “você não quer que eles pensem que se
julga acima deles, não?”), enquanto a morte vai se aproximando.
Mas
eis que a progressão do relato nos mostra que ainda há o unidunitê na
vida de Jinny, que ela ainda não acabou (aliás, uma informação sobre o
estágio da doença dela vai modificar um pouco o panorama do futuro), e
ela tem uma experiência estranha, até assustadora (pode ter ficado à
mercê de um desses psicopatas tão contumazes nesse hemisfério), com
direito à noite estrelada e beijo (o que rende um trecho lindo: “Beijou-a
na boca. Pareceu a ela que pela primeira vez na vida compartilhava um
beijo que era em si mesmo um evento. A história completa, encerrada no
beijo”)
.
A arte de Alice Munro aí nos envolve totalmente, parece que vemos o
mundo com o olhar da sua personagem, e ao mesmo tempo também podemos
acompanhar claramente a maneira como os outros a percebem e tiram
conclusões a seu respeito.
Encerrando a coletânea, o extraordinário The bear came over the mountain[4] se destaca por um motivo extemporâneo: foi adaptado para o cinema, mantendo todas as suas qualidades, por Sarah Polley, em Longe Dela. Mesmo após aparecer a visão cirúrgica e ainda mais impiedosa do tema em Amor
(2012), de Michael Haneke, penso que a variação Munro-Polley mantém seu
impacto e frescor por levantar questões inteiramente diferentes.
Na juventude, a decisão de Fiona casar-se com Grant obedece ao espírito “unidunitê”: “Acha que seria divertido se nos casássemos”. Entretanto, já na época, para Grant, o assunto se apresentava com mais gravidade: “Jamais queria ficar longe dela. Ela possuía a centelha de vida”.
Isso não o impediu de, ao longo de um casamento de décadas, ter casos,
alguns sérios, alguns até ameaçando sua carreira (como professor
universitário), seguindo modismos de comportamento sexual, ainda que
de forma moderada. Enquanto ela, até por um certo esnobismo (ou
autenticidade, ou profunda absorção em si mesma) se mantinha à parte.
Com
o Alzheimer (não-nomeado, mas supõe-se que seja) evoluindo, ela mesma
pondera que o melhor é internar-se numa instituição, na qual uma das
regras é: nos primeiros 30 dias, nada de contato com familiares.Então ao
revê-la, Grant percebe que ela passou para o outro lado da montanha.
Está longe dele. E vemos o reverso doloroso do unidunitê: como conciliar
que aquela pessoa-centelha na sua vida o oblitere quase que
inteiramente,que lhe seja alheia quase que por vontade própria?
O
que torna o texto sensacional é o fato de que Munro mostra que, mesmo
com as deteriorações psíquicas, que esgarçam os laços afetivos de toda
uma existência, A VIDA NÃO PARA. Fiona, apesar de se manter
renitentemente opaca—e isso até o final maravilhoso do relato—para o
leitor (no filme, um efeito também da admirável interpretação de Julie
Christie), constrói novos afetos e relações ali no Meadowlake. Se a vida
(nesse sentido, de afetos e desejos) não para lá fora, dentro da
instituição também não. E Grant se obriga, por ciúme, por desespero, por
inaptidão existencial, a acompanhar essa metamorfose dos sentimentos
da esposa. E se acompanhamos Shakespeare, Machado de Assis, Proust e
Graham Greene nas suas travessias infernais do ciúme, The bear came over the mountain nos descortina novas veredas nesse território:
“Meadowlake
tinha poucos espelhos, de modo que ele não era obrigado a ver a si
mesmo espreitando e rondando. Mas de vez em quando lhe ocorria o quão
patético, idiota e talvez fora dos eixos devia parecer, perseguindo
Fiona e Aubrey por toda parte. E sem sorte alguma em confrontá-la, ou a
ele. Cada vez menos seguro sobre que direito tinha de estar na cena, mas
incapaz de se retirar. Mesmo em casa, enquanto trabalhava em sua
escrivaninha, fazia limpeza ou removia neve com a pá, caso necessário, o
tique-taque de um metrônomo dentro de sua mente fixava-se em
Meadowlake, em sua próxima visita. Às vezes ele parecia a si mesmo um
garoto obstinado fazendo uma corte impossível, outras, um desses malucos
que seguem mulheres famosas pelas ruas, convencidos que um dia essas
mulheres irão se virar e reconhecer seu amor.”
Conforme
a narrativa se complica e se aprofunda, como acontece sempre nesses
casos, vai agregando reflexões perspicazes, muito calcadas na concretude
da vida (mesmo que tudo o que é sólido nas relações se desmanche no
ar). Quando Marian, a esposa de Aubrey, explica a Grant sua relutância
em interná-lo de vez no Meadowlake (e a ausência de Aubrey ali acelera a
deterioração física e mental de Fiona)—ela teria de vender a casa para
mantê-lo ali, e conservar a propriedade da casa é um ponto de honra para
ela, a quem a vida tirou tanto--, lemos:
“Ele
falhara com a esposa de Aubrey, Marian. Já previra que poderia falhar
mas de maneira alguma previra o porquê. Pensara que tudo com que teria
de se haver seria o ciúme sexual ou seu ressentimento (...) Não fazia a
menor ideia da maneira como ela podia encarar as coisas. E mesmo assim,
de algum modo deprimente, a conversa não lhe soara pouco familiar. Isso
porque o lembrou de conversas que tivera com gente de sua família. Seus
tios, seus parentes, provavelmente até sua mãe teriam pensado da forma
como Marian pensava. Teriam acreditado que quando outras pessoas não
pensam dessa forma era porque estavam se tapeando—tinham ficado muito
intelectuais ou estúpidas, por conta de suas vidas confortáveis e
protegidas ou de sua educação. Haviam perdido o contato com a realidade.
Gente educada, gente instruída, gente rica como o sogro socialista de
Grant havia perdido o contato com a realidade. Devido a uma boa sorte
imerecida ou a uma estupidez nata. No caso de Grant, suspeitava, eles
achavam sinceramente que era os dois.
Era assim que Marian o veria, certamente. Uma pessoa tola, cheia de
conhecimento enfadonho e por um acaso protegido da verdade da vida. Uma
pessoa que não tinha de se preocupar em manter sua casa e podia sair por
aí ruminando seus pensamentos complicados.”
Como
se vê, pelo escopo das reflexões e da estrutura narrativa, Munro
poderia ser uma escritora que naturalmente passaria para o romance. Que
ela tenha conseguido encontrar essa forma intermediária, ao mesmo tempo
tão contida e ampla-flexível, é a sua marca, e uma marca e tanto. Assim
como o fato de ela não deixar nunca que a balança penda apenas para um
lado, nem para o jogo aleatório nem para os “laços de ternura”. Tal como
Anne Tyler, ela tem perfeita noção da tênue fronteira entre eles. Mas
sabe que, de fato, Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento, em suas
formas mais diversas, são realidades substantivas em nossas existências.
(outubro de 2013)
[1]
A obra de Alice Munro apresenta um “parentesco”, também, com a de uma
escritora injustamente esquecida, que nos deixou vários livros
excelentes de narrativas mais curtas, Katharine Anne Porter, e com a
parte contística da produção de Doris Lessing.
[2] “Sabitha
era agora uma pessoa reservada, bonita e, notável, incrivelmente magra.
Usou um chapéu preto sofisticado e não falou com ninguém, a não ser que
lhe dirigissem a palavra antes (...) Na igreja Edith tomara a precaução
de não falar com Sabitha primeiro; logo, Sabitha não poderia falar com
ela.”
[3] Urtigas
é outra prova cabal do modo magistral com que Munro constrói seus
textos, sempre partindo de informações fragmentárias, “soltas”, e de
tempos alternados, para depois chegar ao âmago da anedota. Por essa
razão, um dos aspectos mais interessantes desse conto é a parte da
infância, em que a narradora seleciona elementos nostálgicos bem
flanneryanos, como uma brincadeira de crianças que se revela um jogo de
guerra bastante sexualizado, e muito ligado à morte, a baixas humanas,
além da descrição da atividade econômica familiar, com seu elemento de
brutalidade pragmática:
“Eu
tinha mais familiaridade com sangue e matança de animais do que Mike.
Levei-o para ver a mancha num canto do pasto, próximo ao portão do
curral anexo ao celeiro, onde meu pai sacrificava e cortava os cavalos
com os quais alimentava as raposas e martas. O chão era liso de tão
pisoteado e parecia tingido de cor de sangue, um vermelho-ferrugem
escuro. Então eu o levei para o açougue no celeiro, onde as carcaças dos
cavalos ficavam dependuradas antes de serem moídas para virar ração. O
açougue era apenas um barracão com paredes de tela, que ficavam cobertas
de moscas, enlouquecidas com o cheiro de carne apodrecendo. A gente
pegava as leves telhas de madeira e esmagava um monte delas.” O
Canadá apresentado por Munro é um palimpsesto de tempos, onde o rústico,
o rural, o ermo convive com o urbano, o s choques contraculturais, os
modismos.
[4]
Que o tradutor preferiu deixar no original, já que é a alusão à canção
folclórica em que o urso vai para atrás da montanha para saber o que
havia lá...e lá havia o outro lado da montanha.
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Fonte: http://armonte.wordpress.com/2013/10/11/
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