quinta-feira, 24 de outubro de 2013

O GATO



O gato é um animal muito interessante. 

Ele representa a preocupação despreocupada: anda com ar de quem não tem nada a ver com aquilo que o circunda. 

Mas, de vez em quando, deita um olho para ver se tudo está em ordem e seguro. 

Ele não escorrega nunca, jamais cai. 

E se o derrubam, sempre cai de pé. 

Vale a pena observá-lo, sobretudo quando ele é novinho. 

Na medida em que o bichano vai ficando mais maduro, sua velhacaria não tem nome. 

O gato parece-me muito expressivo. É o símbolo do diplomata entre os animais. 

Há gatos lindos, com felpos muito bonitos. Os olhos dos gatos em geral são belos. Mesmo quando meio vira-latas, com uns olhos verdes com tom de uva ordinária, ainda assim eles são interessantes. 

Alguém me dirá: “Mas o Sr. não o considera um animal antipático?” Respondo: “Nem por isso eu deixaria de reconhecer que ele é interessantíssimo.” 

Gato vira-lata e gato educado. Cada um deles apresenta o seu interesse próprio. 

O gato vira-lata, de telhado, como que ostenta espírito de um D’Artagnan. Ele pula, ele se quebra e só não fica caolho. O resto, tudo acontece com ele. Como, por exemplo, num velho lobo do mar fica aquela fisionomia de quem enfrentou todos os mares, também assim o gato vira-lata enfrenta todas as noites, com suas incertezas. 

Pelo contrário, o gato bem arranjado, de casa, é muito educado, limpo, embora falso. Ele finge ser amigo de quem o alimenta... 

É inegável que o conjunto dessas características torna o gato um representante do reino animal imensamente interessante.

As reações que os gatos despertam nos homens são muito diversas, pois vão do extremo da antipatia até o extremo do carinho, passando por toda a gama intermediária. 

É que no gato, animal extraordinariamente rico em aspectos, há de tudo. 

Tigre em miniatura, é ele uma minúscula fera, que às vezes se manifesta arranhando, mordendo, saltando inopinadamente, assustando, pondo tudo em rebuliço e quebrando o que encontra. 

Mas, quando o elemento "fera" se aquieta, o gato se mostra de modo oposto: encantadoramente vivaz, delicado e distinto em todos os seus gestos, expressivo em suas atitudes, carinhoso, mimoso, em suma um verdadeiro bibelô vivo. 

Um bibelô, entretanto, que não tem certo ar de bagatela, inseparável em geral até dos bibelôs mais finos. 

Porque em seu olhar, que tem algo de magnético e insondável, de reservado e enigmático, o gato conserva a terrível e atraente superioridade do mistério. 

Tal é a riqueza da obra do Criador, que nesse ser meramente animal há alguma coisa que apresenta uma analogia frisante com as qualidades e os defeitos do homem. 

Nu, suarento, agressivo, todo entregue aos instintos e às impressões, com o espírito tão limitado que não parece ter a menor consciência do primitivismo de suas armas, nem do primarismo de seus enfeites, esse pobre chefe bárbaro se encontra imerso no mundo da rudeza, da grosseria e da ferocidade. 

Muito mais do que no gato, há nele uma dualidade. O homem, tem em si, por assim dizer, uma fera e um anjo. 

Nesse infeliz africano a fera está bem à mostra. Mas, vendo-o, quem se lembraria do "anjo"? 

Já esses dois gatinhos tão mimosos, tão delicados, tão meigamente aconchegados um ao outro, são... civilizados. 

Se, em lugar de terem sido criados em um salão, tivessem vivido sempre na taba desse bárbaro, certamente não seriam assim. 

Mas há mais. A educação de uma criança começa cem anos antes de nascer, dizia Napoleão. O mesmo pode dizer-se dos gatos. 

Há pelo menos um século de vida de salão, na delicadeza que desabrocha nesses macios bichanos. 

Eles não têm só civilização. Têm tradição. 

Esse pobre bárbaro também tem tradição. Pesam sobre ele séculos de selvageria, sem os quais, em via de regra, ninguém chega a ser tão típica, tão inteira, tão escancaradamente assim. 

Tradição de barbárie, que degrada o homem fazendo com que pareça um bicho. 

Tradição de civilização, que faz com que um bicho pareça quase ter um pouco de humano. 

Plinio Correa de Oliveira (1908-1995)
foi um curioso pensador e ativista católico brasileiro
  
É a força modeladora da civilização. É a influência indiscutível e profunda da tradição. 

Para terminar, uma pergunta. Numa cidade onde houvesse só play-boys e suas congêneres femininas, onde só se tocasse e dançasse rock-and-roll, onde se comesse, falasse, agisse e brigasse à rock-and-roll, ao cabo de cem anos como seriam os gatos? Ficariam igualmente mimosos? Ou tomariam jeito de gato de telhado? 

Imaginemos um gato que vivesse junto a esse bárbaro: seria muito diverso do gato play-boy? Tal amo, tal criado, dizia-se. Tal gato, tal dono, poder-se-ia dizer. 

Os gatos nascidos no "play-boysmo" e na barbárie seriam semelhantes... porque "play-boysmo" não é senão barbárie no cimento e no asfalto.
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