Luiz Felipe Pondé*
O conceito de consciência política é tão científico quanto o conceito de mediunidade
Em mil anos, lembrarão de nossa época como um mundo preso ao mito da
política como redenção. Os medievais esperavam a redenção do mundo pelas
mãos de Deus, nós esperamos a redenção pelas mãos da política, do povo,
dos black blocs.
Quase nada há de científico no tratamento da política no mundo
contemporâneo, mesmo no conceito de "consciência política", que é tão
científico quanto o conceito de mediunidade. Teremos que esperar mil
anos para nos livrarmos dessa crendice.
A rigor, quase não existe ciência política entre nós (pensando ciência
como um método de observação que induz a teorias sobre os eventos
observados), apenas crenças em processos mágicos carregados pelas mãos
sagradas do "povo".
O pensamento mágico em política se caracteriza, entre outras coisas,
pela crença numa teoria a priori da história como processo, teoria esta
por sua vez carregada de significado moral autoevidente (uma espécie de
pureza moral). Já ouviu falar em algo parecido? Por exemplo, crer que
quebrar coisas na rua seja um ato carregado de "justiça social" é como
crer na providência divina do coquetel molotov.
Dias atrás, o editorial desta Folha falava do "fetiche da democracia"
para discutir a eleição direta para reitor da USP. Eu mesmo, nesta
coluna, outro dia, falava dos inúmeros fetiches que marcam o debate
filosófico-político entre nós, além do fetiche da democracia, o do povo,
o da revolução, o das redes sociais, entre outros.
Como antídoto a essa moléstia do pensamento, proponho a leitura do livro
"Mito do Estado", uma pequena pérola do filósofo alemão Ernst Cassirer.
Obra tardia na vida de Cassirer (1946), esse livro é uma espécie de
testamento pessimista deste grande neokantiano. Cassirer ficou conhecido
como autor de duas grandes obras em vários volumes: "Filosofia das
Formas Simbólicas" e "O Problema do Conhecimento" --não sei se existem
traduções delas no Brasil.
Cassirer "saiu da moda" porque pecaria por ter pensado (devido ao
componente hegeliano do neokantismo) a história nos moldes de uma
evolução (um tanto hegeliana) na qual passamos do modo mítico ao modo
lógico-científico de pensar.
Fugindo da perseguição nazista (ele era judeu), Cassirer morre
desesperado com o que ele pensou ter visto: um regresso ao modo
primitivo de pensar a política, a saber, a fé num Estado (o fascista)
todo-poderoso do qual emanaria a redenção da vida. Cassirer acertou em
cheio.
Ainda que o fascismo naqueles moldes tenha passado (quem sabe?),
permaneceu em nós a relação mágica com a ideia da política como dimensão
justificada em sua violência porque redentora da vida.
Se vivesse mais, ele veria que o mito do Estado evoluiria para o mito do
"povo democrático" como soberano "sábio" e "justo", pelo simples fato
de nele repousar a graça da justiça social e histórica (maldito
Rousseau!). Resumo este mito como "o mito da política como redenção".
Puro pensamento mágico.
Quando vemos black blocs quebrando bancos, carros e lojas, sob o efeito
do mito da política, procuramos nesse simples ato de violência alguma
teoria política que justifique a violência. Mas não existe.
Pensar que há é semelhante aos inquisidores que pensavam existir no ato
de queimar pessoas vivas um passo necessário à salvação daquelas almas
perdidas.
A "inquisição das ruas" hoje pensa que nossa sociedade está perdida e
precisa ser salva por tais sacerdotes da pureza política. Mas o pior é
que a classe intelectual é quase toda o alto clero dessa falácia. Rirão
de nós em mil anos por crermos nessa mitologia da revolução.
Daqui a mil anos verão que a Revolução Francesa (mito fundante desta
seita que dá em black blocs) foi um fato desnecessário para o fim do
mundo medieval. Pessoas quebrando coisas na rua não implica em melhoria
política. A Argentina "vive na rua" e sua política é risível. Os EUA
nunca "vão pra rua" e são a melhor democracia do mundo.
Nosso mundo contemporâneo é superficial demais para sustentar mitos, por
isso prefere o fetiche do porrete como pau duro na sua marcha redentora
por "um mundo melhor".
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* Filósofo. Escritor. Prof. Universitário.
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