Luli Hadfahrer*
Está na hora de levar a brincadeira a sério; o jogo se tornou pré-requisito para o desempenho profissional
Durante muito tempo o ato de brincar foi considerado coisa de criança,
aquilo que os pequenos faziam quando se viam livres da interferência dos
adultos. Opostas a "coisas sérias", as brincadeiras não eram
consideradas experiências válidas. O tempo empenhado nelas era, no
máximo, uma forma de lazer.
No entanto, desde o começo do século 20, pedagogos, filósofos,
psicólogos e outros estudiosos do aprendizado vêm percebendo que a
brincadeira é um artifício cerebral de grande importância para o
aprendizado de ideias e conceitos.
O jogo é fundamental para o desenvolvimento social, emocional,
intelectual e físico. Ambiente de simulação e representação de papéis,
nele o tempo acontece de forma desestruturada e interativa, dando a seus
participantes um grande controle sobre elementos que, na vida
cotidiana, seriam imprevisíveis.
Muita gente que despreza jogos não percebe que, ao entrar em debates
políticos, questões de poder e estratégias de sedução, está jogando
outro tipo de jogo, e, como os outros, tem regras claras e está aberto a
intervenções.
Há mais de meio século, Sigmund Freud defendia que cada criança, ao
brincar, se comportava como um artista ou um cientista. Ambos criam
estruturas diferentes da realidade, em que os elementos do mundo são
desativados ou reestruturados, ficando sujeitos à manipulação.
Está na hora de levar a brincadeira a sério. Hoje, tempos em que tanto
se fala em inovação, cocriação e "design thinking", o jogo se tornou
pré-requisito profissional. É nele que se desenvolve o raciocínio
sistêmico e multivariável que mais tarde será necessário para
desenvolver e operar novos aplicativos e interfaces.
O fluxo ininterrupto de informação do mundo digital faz com que seja
preciso aprender o tempo todo, questionando e desafiando as velhas
certezas. Equipamentos de ponta nos hospitais e na indústria são tão
diferentes do velho computador-e-mouse que nem parecem ter a mesma
origem. Seu comportamento é tão amigável que se torna irresistível
chamá-los de brinquedões.
Se muita gente ainda tem preconceito com relação aos jogos é porque os
videogames, como a internet e a informática, cresceram sob os nossos
olhos. Como tios desligados, muitos ainda os veem como as crianças que
um dia foram. Um Xbox One é tão diferente do fliperama em que se jogava
"Pac-Man" quanto um Airbus A380 difere de um balão.
Muitos jogos têm roteiros primários, mas isso é culpa de roteiristas e
do mercado. Não se pode comparar Akira Kurosawa a James Cameron.
Boa parte da internet e de sistemas como o Unix foram criados
colaborativamente no horário livre de programadores, que levavam a
atividade com uma dedicação de atleta profissional. APIs, impressoras 3D
e circuitos como Arduino e Raspberry Pi criam uma nova geração de
hackers que questionam as estruturas com suas tecnogambiarras.
O impulso lúdico é tão forte que vemos a criação de jogos até em lugares
inesperados. Quem diria que, no Twitter, teriam destaque brincadeiras
como Trending Topics, FollowFriday ou o uso do caractere #?
Há jogos por toda parte. De "Candy Crush" a "GTA", passando por
Foursquare, eles podem ser óbvios ou complexos, declarados ou
intuitivos. Quem não consegue vê-los é porque não sabe brincar.
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* Ph.D. em comunicação digital pela ECA-USP.
Fonte: Folha on line, 07/10/2013
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