Luiz Felipe Pondé*
Na realidade, nem só de liberdade vive o desejo, mas também de pecado, medo e vergonha
Outro dia, dirigindo pelo trânsito de São Paulo, ouvi uma música da Lana
del Rey que me chamou atenção, pela ideia que nela se repetia: o medo
sentido por uma mulher de ser abandonada por seu amado um dia, quando
sua beleza e juventude acabassem e restasse apenas sua "aching soul"
(sua alma em dor ou em agonia). Uma letra romântica banal, como todo
clichê.
Mas quem em sã consciência negaria que essa mesma letra banal descreve a
dor de todos nós, homens e mulheres que envelhecem e perdem a beleza
dia após dia? Acredito mais nessa letra de música do que em inúmeros
textos sofisticados sobre "relações entre sexo, afeto e poder".
Cada dia que passa, temo pela irrelevância dos estudos acadêmicos das
chamadas ciências humanas, devido ao que o intelectual americano Thomas
Sowell chama de alienação da classe "ungida" que somos nós, os
intelectuais.
Essa música seria facilmente acusada de repetir a "ideologia dominante"
(para mim, esse conceito tem a mesma validade de dizer que algo acontece
porque Saturno está na casa sete...) e de que esse medo é simplesmente
"culpa" da opressão do conceito de beleza capitalista ou sexista. Pensar
que cultura pop seja simples sintoma da "ideologia dominante" é ser
incapaz de enxergar o óbvio.
A vida é clichê, por isso, temo, revistas femininas logo serão mais
relevantes no debate sobre comportamento e afetos contemporâneos do que
estudos acadêmicos. Seria essa, afinal, a vingança do jornalismo, muitas
vezes menosprezado por nós, intelectuais, contra a soberba dos ungidos
que nada entendem das agonias de carne e osso? Talvez a condição de
escrever sob o gosto de sangue e de saliva que tem a trincheira da vida
real dê às revistas femininas mais consistência do que as elaborações
sem corpo dos especialistas em afetos.
O filósofo Francis Bacon (séculos 16-17) tirava sarro da "baixa
escolástica" e suas questões sobre quem puxava o burro, quando se puxava
um burro com uma corda, se era a pessoa ou a corda que puxava o
burro... (risadas?). Penso que, em 500 anos, rirão de nós da mesma forma
quando se diz hoje em dia que o medo de uma mulher (ou de um homem) de
ser abandonada é sintoma de "opressão social", e que pessoas emancipadas
não sofrem com isso. O conceito de opressão virou um grande fetiche dos
intelectuais.
Suponho que assim como os textos de Sade (considerado lixo no século 18)
hoje são parte do cenário filosófico, em 500 anos as revistas femininas
serão mais importantes para a compreensão do que pensamos hoje do que
toda a parafernália de teorias sobre "relações de poder".
Um adendo: vale salientar que Sade não ficou importante porque é o
ancestral de toda teoria que relaciona sexo à perversão, mas sim porque
ele relaciona sexo, afeto e a crueldade de nossa natureza humana e da
natureza biológica como um todo.
Talvez um dos maiores medos humanos e que move o mundo desde sempre seja
justamente o medo de perder a beleza e a juventude, e se restará alguém
ao nosso lado quando formos apenas uma alma em agonia. Já que as
ciências humanas mentem, a esperança é que as revistas femininas falem a
verdade que não quer calar: ao final, temos mesmo é medo de sermos
feios e mal-amados.
Por fim, recomendo vivamente o livro "Não se Pode Amar e Ser Feliz ao
Mesmo Tempo" (Nova Fronteira), de Nelson Rodrigues, escrito sob o
pseudônimo de Myrna, sua rápida coluna de 1949 no "Diário da Noite".
Esta "mulher" Myrna é uma sábia. Falaremos dela em 500 anos.
Revistas femininas e autores como Nelson Rodrigues são acusados de
moralismo. Antigamente o moralismo relacionava sexo, afeto e demônios.
Incrível como não se vê que hoje o verdadeiro moralismo está nas teorias
que relacionam as formas comuns (dos meros mortais) de afeto e sexo a
"frutos da opressão da mulher".
Aprendemos a negar nosso medo com teorias sofisticadas, mas o medo
sempre aparece. Ficou chique dizer que se é emancipado, quando na
realidade nem só de liberdade vive o desejo, mas também de pecado, medo e
vergonha. Como dizia Nelson, "o desejo também precisa de seu claustro".
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* Filósofo. Prof. Universitário. Escritor.
ponde.folha@uol.com.brFonte: Folha on line, 07/10/2013
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