terça-feira, 8 de outubro de 2013

Remontar às raízes para rejuvenescer

 Leonardo Boff*
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Por mais distantes que andemos pelo nosso planeta, ou até fora dele como os astronautas, sempre carregamos junto a força das raízes. De tempos em tempos elas se avivam e suscitam em nós um desejo incontido de voltar a elas. Não estão fora de nós. São a nossa inconsciente base de sustentação e alimentação vital. Por isso sempre as carregamos conosco. E rejuvenescemos cada vez que regressamos a elas. 
 
Nos dias 9 e 10 de setembro do corrente ano, vivi rara experiência ao visitar a casa de meu avô no norte da Itália. Sentimentos profundos, vindos da noite do inconsciente pessoal e coletivo, irromperam em mim. Senti-me religado àquela origem: a velha casa, os quartos enegrecidos, as portas que rangem ao abrir-se, as camas duras e largas (vários dormiam juntos), o fogão a lenha, os armários cheios de antigas tigelas e vasos, a mesa grande para todos caberem com seus longos bancos de cada lado. Era a paisagem interior. Da varanda se descortinava a paisagem exterior. Ela dá para um longo vale com casinhas distribuídas no meio dos campos verdes e ao longe o famoso Monte Grappa, de quase 2 mil metros de altura, no qual se travaram sangrentas batalhas na Primeira Guerra Mundial, entre o Exército italiano e o austro-húngaro.

Era a casa do avô paterno no Vale de Seren del Grappa, perto de Feltre e de Belluno, na região do Triveneto italiano. Na verdade, é um pequeno conglomerado de casas, coladas umas às outras, chamado de Col dei Bof (Colina dos Bof). Fica no alto, a meia altura da grande montanha. Estava até há pouco totalmente abandonada, como tantas outras casas da montanha. Até que a Fundação di Seren, formada por gente de Bolzano, Feltre e Belluno, com alguma posse e forte sentido de resgate ecológico da região, a assumisse e transformasse num centro de encontro e de cultura. À noite é iluminada. Parece suspensa no ar, com o escuro da montanha por trás.

A população do vale era pobre, a agricultura de subsistência mal alimentava a família, pois os solos montanheses tinham pouca fertilidade. Muitos passaram fome. Alguns conheceram a pellagra (extrema fome, pois só comiam polenta e água, até quase definharem).

Neste contexto, boa parte da população de pouco mais de 2 mil pessoas emigrou, alguns para o Rio Grande do Sul, por volta de 1880. Os antepassados, no século 15, vieram da Alemanha (Alsácia e Lorena, hoje França), especialmente os dois antepassados Rech e Boff (escrevia-se Boeuf). Eram especialistas em desmatar as árvores centenárias daqueles vales e montanhas, e faziam delas carvão, vendido em toda a região do Vêneto (Bolzano e Veneza).

Ao chegar ao local, esperava-me um punhado de parentes antigos. Haviam enfeitado a casa com espigas de milho, flores e frutas da época. Um coreto cantava as canções em dialeto vêneto, que conhecíamos de casa. De repente, colocado diante da velha casa – uma construção ampla e imponente – senti que aquelas paredes estavam impregnadas do espírito do “poro nonno Boff”. Sim, ele estava lá. Os mortos são apenas invisíveis, mas nunca ausentes. Vi sua figura sempre séria, mas de cultivada elegância, com seu lenço ao pescoço, montado num cavalo bem encilhado, nos visitando na vila vizinha. Ele sempre me punha sentado sobre seus joelhos e me fazia gracejos no estilo hilariante dos italianos. E no fim, escondido de meu pai, me dava algum dinheiro, coisa que eu mais esperava.

Fui dirigir a palavra aos presentes. A voz se afogou na garganta. Deixei que as lágrimas da lembrança e da saudade rolassem dos olhos e pela barba. Sentia, por uma percepção transracional, que ele estava lá. Eu imaginava sua coragem: abandonou tudo, a casa, a terra dos antepassados, a paisagem querida para enfrentar o desconhecido e construir a “Mérica” como diziam (Merica, Merica,Merica, che cosa sarà questa Merica? Un massolin di fior”: “América, América, América, que coisa será esta América? Um ramalhete de flor”). Visitei cada canto e até folheei velhos livros que lá ficaram.

À noite falei para a população. Hoje são apenas 2 mil pessoas. A igreja estava cheia. Contei histórias heroicas dos avós, como primeiramente desbravaram o Rio Grande, e depois os filhos (meus pais) desbravaram a região, que hoje é Concórdia, no Oeste de Santa Catarina. Como rezavam o terço aos domingos, cantavam a ladainha de Nossa Senhora em latim, e como meu pai, mestre escola, ensinava aos mais velhos o português, pois em casa só falavam o dialeto vêneto. Vim da pedra lascada, percorri todas as fases da evolução cultural e hoje, disse, estou aqui com vocês, encontrando as raízes antigas e sempre novas. No fim cantei o que cantávamos na colônia italiana: ”Sia dottore o avvocato, tutto deve a suo papa. Ma bambini, lo sapete che il vostro nonno avanti sempre va: Seja doutor ou advogado, tudo deves a teu pai. Mas, meninos, sabei que o vosso avô sempre vai à frente”.

No transmontar da vida, tive uma experiência de rejuvenescimento junto às raízes.
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* Leonardo Boff é teólogo e professor emérito de ética da UERJ. 
Fonte:  http://www.mercadoetico.com.br

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