Tony Bellotto*
Querer reprimir a liberdade de expressão em nome da preservação do direito à privacidade
é dar um tiro no pé.
O bebê de Salomão
A liberdade é uma só e não pode ser retalhada
como o bebê de Salomão, aquele que quase foi repartido a golpe de
espada entre as duas mulheres que reivindicavam sua maternidade. Estou
ao lado dos que se opõem ao artigo do código civil que prevê para
biografias a autorização prévia do biografado. A modificação da
legislação no sentido de permitir que biografias sejam publicadas sem
necessidade de autorizações é inevitável e natural numa democracia que
se aperfeiçoa, e a intenção de suprimi-la não causaria celeuma caso o
grupo de artistas que forma o movimento Procure Saber não tivesse se
manifestado por sua permanência no código civil.
Édipo
A
admiração, o respeito e a gratidão que sinto por Roberto, Erasmo,
Djavan, Mautner, Chico, Caetano e Gil são incondicionais. Atribuo a eles
grande parte da construção da minha visão de mundo, e pesa-me discordar
publicamente de suas posições. O que gera discussão é ver aferrados a
uma postura conservadora artistas historicamente comprometidos contra a
censura e que sempre se pautaram pelas liberdades e ousadias estéticas e
comportamentais. O que não justifica sua vilificação por parte da
imprensa, tachando-os — de forma desrespeitosa e ressentida — de
“censores” intolerantes. Não se pode resumir uma questão relevante a uma
simples queda de braço entre celebridades e jornalistas. Não se trata
de uma picuinha. Atentemos para não perder o foco do que está em jogo.
Controle absoluto
O
ponto central da discussão é a contraposição entre liberdade de
expressão e direito à privacidade. Embora reconheça pontos plausíveis na
argumentação do Procure Saber, não concordo que para preservar o
direito à privacidade seja admissível relativizar ou cercear a liberdade
de expressão. Em democracias mais aprimoradas, liberdade de expressão e
direito à privacidade caminham juntos, ao passo que, em regimes
intolerantes e totalitários, quanto mais se reprime a liberdade de
expressão, mais se restringe o direito à privacidade. Querer reprimir a
liberdade de expressão em nome da preservação do direito à privacidade é
dar um tiro no pé. O controle absoluto da própria história não ocorre
numa sociedade livre e democrática. Controle absoluto, só em regimes
totalitários, e sempre como primazia do Estado e não dos indivíduos.
Referendo
Em
2005 justifiquei a um amigo meu voto a favor da comercialização de
armas de fogo no Brasil: “A liberdade é uma só.” O amigo não se
conformava com o fato de um adepto dos princípios da não violência de
Gandhi e não afeito a armas de fogo votar a favor de sua
comercialização. Segui com minha justificativa: “Quero viver num país
livre em que as pessoas tenham liberdade para fazer, dizer e comprar o
que bem entenderem.”
É preciso saber viver
Na minha
concepção utópica seriam legalizados drogas, aborto e a eutanásia. Voto e
serviço militar deixariam de ser obrigatórios. No meu Brasil
idealizado, caberia ao Estado, em vez de punir e reprimir, amparar,
informar e regular práticas de direito individual e uso e
comercialização de substâncias tóxicas dentro das medidas do bom senso e
da lei, como já ocorre com tabaco, álcool e algumas formas permitidas
de interrupção de gravidez e morte assistida — desligamento de aparelhos
em caso de morte cerebral, por exemplo.
Liberdade exige coragem. Numa sociedade livre algum desapego é recomendável, assim como doses cavalares de tolerância.
“Fahrenheit 451”
No
romance “Fahrenheit 451”, Ray Bradbury nos apresenta um futuro sombrio
em que livros e pensamento crítico estão banidos da sociedade, num mundo
em que opiniões próprias são consideradas antissociais. Entre 10 de
maio e 21 de junho de 1933, logo depois da chegada de Hitler ao poder,
nazistas organizaram em várias cidades alemãs grandes e festivas queimas
de livros. Entre os autores “incinerados” estavam Thomas Mann, Walter
Benjamin, Brecht, Musil, Freud, Einstein e Marx. O evento é reconhecido
como um dos mais cruéis atentados à liberdade de expressão da História.
Livros — mesmo os ruins — simbolizam liberdade de pensamento. Reprimir
ou condicionar sua publicação soa como uma ameaça a um princípio
fundamental da democracia.
-------------------------
-------------------------
Nenhum comentário:
Postar um comentário