João Pereira Coutinho*
Não são os homens públicos que devem ser virtuosos;
são as leis que devem ser implacáveis
Você, leitor, é pessoa honesta e cumpridora. Trabalha. Paga as contas. É
decente com a mulher e os filhos. Mas quando olha em volta, o cenário é
selvagem. Os colegas usam e abusam da dissimulação e da mentira. Sem
falar da corrupção de superiores hierárquicos ou de políticos nacionais,
esse câncer que permite a muitos deles terem o carro, a casa, as
férias, a vida que você nunca terá.
Para piorar as coisas, eles jamais serão punidos por suas viciosas
condutas. A pergunta é inevitável: será que eu devo ser virtuoso? Será
que eu devo educar os meus filhos para serem virtuosos?
Essas perguntas foram formuladas por Gustavo Ioschpe em excelente texto
para a "Veja". De que vale uma vida ética se isso pode representar,
digamos, uma "desvantagem competitiva"?
Boa pergunta. Clássica pergunta. Os gregos, que Ioschpe cita (e, de
certa forma, rejeita), diziam que a prossecução do bem é condição
necessária para uma vida feliz. Mas o que dizer de todas as criaturas
que, praticando o mal, o fizeram de cabeça limpa por terem falsificado a
sua própria consciência?
Apesar de tudo, Gustavo Ioschpe tenciona educar os filhos virtuosamente.
Não por motivos religiosos, muito menos por temer as leis da sociedade.
Mas porque assim dita a sua consciência. Um dia, quem sabe, talvez o
Brasil acabe premiando essas virtudes.
A resposta é boa por seu otimismo melancólico. Mas, com a devida vênia
ao autor, gostaria de deixar dois conselhos para acalmar tantas
angústias éticas.
O primeiro conselho é para ele não jogar completamente fora as leis da
sociedade na definição de boas condutas. Porque quando falamos de vidas
éticas, falamos de duas dimensões distintas: uma dimensão pública, outra
privada.
E, em termos públicos, acreditar que os homens podem ser anjos (para
usar a célebre formulação do "Federalista") é o primeiro passo para uma
sociedade de anarquia e violência.
Na esfera pública, eu gostaria que os homens fossem anjos; mas,
conhecendo bem a espécie, talvez o mínimo a exigir é que eles sejam
punidos quando se revelam diabos.
Se preferirmos, não são os homens públicos que têm de ser virtuosos; são
as leis que devem ser implacáveis quando os homens públicos são
viciosos.
Isso significa que a principal exigência ética na esfera pública não
deve ser dirigida ao caráter dos homens --mas, antes, ao caráter das
leis e à eficácia com que elas são aplicadas. No limite, é indiferente
saber se os homens públicos são exemplos de retidão. O que importa saber
é se a República o é.
Eis a primeira resposta para a pergunta fundamental de Gustavo Ioschpe:
devemos educar os nossos filhos para a virtude? Afirmativo. Ninguém
deseja para os filhos a punição exemplar das leis. E, como alguém dizia,
é do temor das leis que nasce a conduta justa dos homens. Desde que,
obviamente, as leis inspirem esse temor.
E em privado? Devemos ser virtuosos quando nem todos seguem a mesma cartilha e até parecem lucrar com isso?
Também aqui, novo conselho: não é boa ideia jogar fora os gregos.
Sobretudo Aristóteles, que tinha sobre a matéria uma posição sofisticada
e, opinião pessoal, amplamente comprovada.
Fato: não há uma relação imediata entre virtude e felicidade. Mas
Aristóteles gostava pouco de resultados imediatos. O que conta na vida
não são as vantagens que conseguimos no curto prazo. É, antes, o tipo de
caráter que "floresce" (uma palavra cara a Aristóteles) no curso de uma
vida.
E, para que esse caráter "floresça", as virtudes são como músculos que
praticamos e desenvolvemos até ao ponto em que a "felicidade", na falta
de melhor termo, se torna uma segunda natureza.
Caráter é destino, diria Aristóteles. O que permite concluir,
inversamente, que a falta de caráter tende a conduzir a um triste
destino. Exceções, sempre haverá. Mas, aqui entre nós, confesso que
ainda não conheci nenhuma. Não conheço maus-caracteres que tiveram
grandes destinos.
Sim, leitor, não é fácil olhar em volta e ver como a mesquinhez alheia
triunfa e passa impune. Mas não confunda o transitório com o essencial.
E, sobretudo, nunca subestime a capacidade dos homens sem caráter para arruinarem suas próprias vidas.
Educar os filhos para serem "homens de bem" é também ajudá-los a evitar essa ruína.
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* É jornalista, escritor, historiador e comentador e cientista político português.
Fonte: Folha on line, 08/10/2013
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