Toda
a obra de Franz Kafka tem qualquer coisa de parábolas desdobradas em
romances e contos; o espírito de Kafka, próximo de Pascal e Kierkegaard,
gostava de exprimir-se em parábolas condensadas, em aforismos
Otto Maria Carpeaux
Seleção e tradução
1 — Pelo próprio ato de viver, ele embaraça o seu caminho. O embaraço, porém, dá-lhe a prova de que ele vive.
2 — Certas pessoas negam a miséria, referindo-se ao sol; ele nega o sol, referindo-se à miséria.
3 — O motivo de o juízo da posteridade sobre o indivíduo ser mais
certo do que o juízo dos contemporâneos, encontra-se no próprio morto. O
indivíduo desenvolve-se só depois da morte, quando sozinho. A morte é
para o indivíduo o que é a tarde de sábado para o limpador de chaminés:
lava-o da fuligem.
4 — Todas as virtudes são individuais; todos os vícios são sociais.
5 — Ele tem dois adversários: o primeiro combate-o por trás, da
Origem; o outro barra-lhe o caminho para a frente. Ele luta contra os
dois. Para dizer a verdade, o primeiro, propulsando-o, ajuda-o contra o
outro, e, do mesmo modo, o outro, repelindo-o, ajuda-o contra o
primeiro. Mas isto só em teoria. Pois não há só os dois adversários:
existe também ele próprio — e quem conhece as próprias intenções? É o
seu sonho que num momento inesperado — e deveria ser uma noite, tão
escura como nunca houve igual — abandona o campo de batalha, elevado que
foi, graças à sua experiência na luta, à condição de juiz dos dois
adversários.
6 — O verdadeiro caminho é o caminho sobre uma corda, estendida não
no alto, mas no chão. Corda que parece destinada antes a fazer tropeçar
que a ser atravessada.
7 — Há dois pecados capitais, dos quais derivam todos os outros:
impaciência e relaxamento. Por efeito da impaciência, foi o homem
expulso do paraíso; por efeito do relaxamento, lá não voltará. Mas…
também pode ser que não volte por efeito da impaciência.
8 — O movimento decisivo da evolução humana é permanente. Por isso,
têm razão os movimentos de espírito rev9olucionários, que declaram sem
efeito todo o passado: nada ainda aconteceu.
9 — Um dos mais eficientes meios de sedução do Demônio é a provocação à luta. É como a luta com mulheres, que acaba na cama.
10 — Leopardos irromperam no templo e esgotaram os vasos sagrados;
isto se repetiu sempre. Enfim, é possível imaginá-lo, torna-se parte da
liturgia.
11 — Tu és a prova. Mas não existe aluno.
12 — As gralhas afirmam possuir o poder de destruir o céu. Isso está
fora de dúvida, mas nada prova contra o céu; pois “céu” significa:
ausência de gralhas.
13 — É só por nossa noção de tempo que falamos de Juízo Final; na verdade, é um permanente tribunal de emergência.
14 — Na luta entre o Mundo e ti, acompanha ao Mundo; não é lícito defraudar ninguém — nem o Mundo, portanto — da sua vitória.
15 — Uma fé como a guilhotina; assim leve, assim pesada.
16 — Existe conhecimento do diabólico, mas não existe fé nele; pois não existe mais diabólico do que existe.
17 — Até mesmo o mais conservador tem força para o radicalismo de morrer.
18. O ócio é o princípio de todos os vícios e o coroamento de todas as virtudes.
19 — O Messias só virá quando já não precisarmos dele.
20 — Muitos se queixam de que as palavras dos sábios são sempre só
parábolas, inúteis na vida quotidiana; e só esta nos é dada. Todas as
parábolas dizem apenas que o incompreensível é incompreensível; e isto
já sabemos. Disse um: “Porque resistes? Se obedecesses às parábolas,
transformar-te-ias em parábola, e estarias livre da vida quotidiana.”
Outro disse: “Eu gostaria de apostar em que isto também é uma parábola.”
O primeiro respondeu: “Ganhaste.” O outro disse: “Mas infelizmente, só
na parábola.” E o primeiro: “Não, na realidade; na parábola, perdeste.”
Publicado originalmente, em 1943, na extinta “Revista do Brasil”. Fonte: http://www.revistabula.com/
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