Santo Agostinho repõe o tema do tempo em
termos que conduzem o pensamento
da exterioridade para a interioridade
Cristiane Negreiros Abbud Ayoub
A abordagem do tempo na filosofia de Santo Agostinho (354–430) é,
ainda hoje, referência necessária a todos os interessados nesse tema.
Cabe, porém, observar que não se trata de uma questão com solução
tranquila e imediata. Ao contrário, no texto clássico do livro XI das Confissões, o tempo é um enigma cujo estudo se dá por perguntas. Essas perguntas, aos poucos, afastam equívocos.
O que é o tempo? A questão não admite uma resposta direta. A
dificuldade reside justamente no envolvimento do homem com o tempo, pois
o homem também é temporal, mutável. Como, então, falar de algo do qual
não se tem distância para avaliar? A resposta deve vir “sem se
distanciar”, ou seja, a questão do tempo deve ser tratada como uma
situação.
Assim, o tempo é próximo e familiar ao homem; contudo, a um simples
questionamento sobre o que ele é, constata-se a ausência de resposta.
Vive-se no tempo, mas sem saber o que ele é. Eis o entrave:
“O que é afinal o tempo? Quem o explicaria fácil e brevemente? Quem o
captaria, ainda que apenas no pensamento, para proferir uma palavra
sobre ele? Mas, ao falar, o que mencionamos que é mais familiar e
conhecido do que o tempo? De algum modo, entendemos quando falamos do
tempo, e também entendemos quando ouvimos outra pessoa falar dele. O que
é, portanto, o tempo? Se ninguém me pergunta, sei; se eu quiser
explicar a quem pergunta, não sei.” (Confissões XI).
Mas o tempo é algo. E como o homem sente e mede algo sem saber o que
é? Por onde começar a investigá-lo? Para lidar com essa dificuldade,
Agostinho propõe uma abordagem do tempo a partir da eternidade. O homem
busca conhecer a eternidade divina; por isso, a investigação sobre a
natureza do tempo é conduzida por contraste e semelhança com a
eternidade.
A perspectiva da eternidade
Na primeira parte do livro XI das Confissões, Santo Agostinho procura esclarecimento na Verdade eterna para o que seria a eternidade, e um dos modos de obtê-lo é ler as escrituras sagradas. A eternidade é, então, identificada com o sempre presente Princípio (Gênesis 1,1), o Verbo de Deus, Mediador misericordioso, Verdade, Sabedoria, Criador de tudo e luz que brilha no íntimo do homem, falando-lhe intimamente. Trata-se, portanto, de um atributo divino: o eterno presente no qual Deus produz e sustenta todas as coisas.
Ora, para pensar o tempo, surge a seguinte questão: se o princípio
eterno é anterior às criaturas (pois as fez), a eternidade seria
anterior ao tempo? Sim e não. Não, se imaginarmos que a eternidade
existia cronologicamente antes de o tempo ter sido criado. Essa resposta
é descabida, pois reduz a eternidade ao curso do tempo e, temporizada,
deixa de ser eternidade. Mas, sim, se aceitarmos que há uma
anterioridade causal da eternidade divina, porque ela cria do nada todas
as criaturas (inclusive o tempo).
Assim, a existência do tempo (e de todas as criaturas) depende da
eternidade. A eternidade, então, oferece um parâmetro inequívoco para
pensar o tempo. Ou seja, para Agostinho, a meditação sobre o tempo parte
do contato humano com a eternidade. O parâmetro do processo de
investigação é a Verdade eterna, que sempre ilumina a interioridade do
homem. Ao mesmo tempo, a eternidade é descoberta em contraposição ao
tempo; ela é o que o tempo não é.
Tempo e presença interior
Se o homem sente e mede o tempo, este é uma criatura. Diante da dificuldade de definir o tempo, porém, a questão é deslocada para sua sensação e medição, ou seja, para a relação da alma com ele. Com efeito, o homem sente o tempo passando: vem do futuro, atravessa o presente e torna-se passado. No entanto, ele é fugidio: basta tentar reter a existência presente do tempo e ele escoa para o passado, que já não existe. Isso indica que apenas um átimo (momento indivisível) pode ser presente.
Ora, se o tempo é tão fugidio, como explicar o fato de que contamos,
comparamos e atribuímos duração aos tempos? Como falarmos de
acontecimentos futuros e passados? Esses acontecimentos, que não existem
na realidade (porque o que já passou não mais existe, e o que ainda
virá ainda não existe), referem-se a uma presença interior à alma; eles
têm alguma realidade apenas para a alma que pensa neles.
O que se percebe pelos sentidos fica registrado na memória e, a
partir de então, passa a existir em regime de interioridade. Em outros
termos, é regido por uma temporalidade espiritual (da alma).
Encontram-se na memória as sensações, imaginações, experiências
passadas, ideias.
Assim, o passado consiste no presente do que passou (fora) e está
armazenado na memória (dentro). Quanto ao futuro, ele é pensado com base
no que há na memória (com base no passado), mas com outra disposição da
alma, que Agostinho chama de “expectativa”. E o presente é exatamente o
olhar da alma. Aqui, o pensamento de Agostinho é inédito:
“Isto agora é límpido e claro: nem as coisas futuras existem, nem as
coisas passadas, nem dizemos apropriadamente ‘existem três tempos: o
passado, o presente e o futuro’. (…) Existem, sim, três tempos: o
presente das coisas passadas, o presente das coisas presentes, o
presente das coisas futuras. (…) [os] três estão de alguma maneira na
alma e eu não os vejo em outro lugar: o presente das coisas passadas é a
memória, o presente das coisas presentes é o olhar, o presente das
coisas futuras é a expectativa.” (Confissões XI).
Portanto, toda experiência humana da temporalidade é regida por uma
referência interna, independente da mudança dos corpos. Mas, se o tempo
existe internamente, como medi-lo? Se o tempo sempre passa, então não
tem duração “espacial”, ou seja, é impossível afixar dois tempos para
compará-los, medindo um em função do outro. Dois tempos não são como
duas vigas colocadas lado a lado, porque não é possível estabilizar o
curso do tempo (ele não é como um traço que conserva seu começo e seu
fim).
Resta que medimos o tempo não pela distensão de algo exterior. O que
medimos é uma distensão interior: o tempo é distensão da alma. Agostinho
mostra dois sentidos de distensão. O sentido mais facilmente
reconhecido refere-se à exteriorização exagerada, processo em que a alma
habita o mundo exterior e desgasta-se com preocupações e ocupações
excessivas, alheias ao regime da interioridade. O outro sentido é tomado
por Agostinho do texto bíblico de Josué 10,12. Nessa passagem, Deus
para o sol a fim de completar uma batalha virtuosa. Esse texto mostra
que o senhor do tempo é o criador onipotente. A referência, portanto, é
Deus, e, se a via de acesso a Deus, para os homens, é a interioridade,
então será também nessa dimensão puramente espiritual que o tempo
admitirá outra velocidade. Nesse sentido, o tempo é medido pela
distensão da alma, e não por algo exterior a ela.
A distensão da alma
Ao aproximar-se de seu âmago, o homem converte-se para seu coração, onde a eternidade fala como Princípio, Verbo e Verdade. As ações e reflexões assim direcionadas produzem também uma distensão, outra temporalidade, menos fugidia e menos desatenta, mais ampla e mais concentrada, um preenchimento total, e então o homem tem a experiência de que o tempo reflete a eternidade. Nesse estado o homem pode realizar tantas coisas e tão bem (por não haver distração, nem exageros causados pela falta) que, aos olhos de outros homens, parecerá que o tempo parou para aquele homem agir.
Para pensar essa temporalidade, Agostinho compara a medição humana do
tempo com a medição do silêncio na música. Assim, medimos o silêncio
como se houvesse som, mas sem haver som; ou seja, medimos não o som, mas
certa “extensão” que o silêncio ocupa na alma. Aplicando essa
comparação ao tempo, quando o medimos, medimos a distensão mesma do ato
de a alma ocupar o tempo, ocupar sua existência e ser presente a si
mesma. Explorando o exemplo do canto, Agostinho mostra como o ato de
cantar revela o que ocorre em “todas as ações do homem” (Confissões XI):
“Vou entoar uma canção que conheço. Antes de iniciar, minha
expectativa se estende totalmente, mas quando começar, tanto quanto eu
tiver tirado da expectativa, também minha memória se estende, e a vida
desta minha ação se distende na memória (em razão do que cantei) e na
expectativa (em razão do que cantarei). Minha atenção também está ali,
presente, pela qual o que era futuro é arrastado para tornar-se passado.
E quanto mais isso acontecer e acontecer, a expectativa será abreviada e
a memória será prolongada, até que toda a expectativa seja consumida,
quando toda a ação terminada houver transitado para a memória. E o que
ocorre na canção toda também ocorre nas suas partículas singulares, e o
que ocorre nas partículas singulares também ocorre na ação mais longa,
da qual talvez aquela canção seja uma partícula, e o mesmo em toda a
vida do homem, das quais são partes todas as ações do homem.”
Ao cantar uma canção conhecida, o homem sabe o que deverá cantar no
futuro e que ainda não foi cantado. Enquanto canta, reconhece o que
cantou. No cantar, a alma vive os três tempos e a medida dos tempos e
dos silêncios; ela sabe que algumas notas devem ter duração mais breve
do que outras, e o mesmo quanto aos silêncios. Para cantar, a alma
alarga-se internamente em três tempos e experimenta o tempo mais estável
e menos fugidio, mais próxima que está da presença íntima da
eternidade. Ao cantar, é menos refém do tempo exterior, que foge
vertiginosamente, e mais próxima de si mesma, porque mais voltada à
eternidade.
O verso escolhido por Agostinho para ilustrar a métrica do tempo é “Deus creator omnium”
(“Deus criador de todas as coisas”). Ao entoá-lo, deve-se respeitar a
alternância entre sílabas longas e breves: com o canto, o homem cria o
que na exterioridade antes não havia. O cantar é revelado como o ato
humano semelhante ao ato da criação, com base no conhecimento simultâneo
dos tempos. Por que cantar? Por que senão por generosidade e graça?
Na meditação sobre o tempo, Agostinho propõe adotar o ponto de vista
cada vez mais próximo da eternidade-verdade-princípio. Isso se dá por
uma depuração do pensamento humano, que, aos poucos, vai se despojando
de um referencial exterior. E, embora o homem se equivoque nas respostas
que oferece ao pensar a eternidade, isso significa a exposição de
parâmetros humanos em vias de depuração. Significa também tomar o homem
como portador de um elo fundamental e interior com a eternidade; um
vínculo que, se consultado, esclarece os equívocos humanos. Nesse
sentido, o tempo é espelho da alma.
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Fonte: http://revistacult.uol.com.br/
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