sábado, 5 de outubro de 2013

QUANDO O REICH VIROU RANICKI

 Marcelo Oliveria da Silva*

A fabulosa trajetória de um judeu sem diploma, sobrevivente do Gueto de Varsóvia, que devolveu aos alemães seu cânone literário e se tornou o papa das letras germânicas

“Ele, que os alemães um dia expulsaram de seu meio e tentaram assassinar, teve a grandeza de abrir-lhes novos caminhos de volta à própria cultura.” “Nem mesmo o ódio homicida dos nazistas conseguiu tirar-lhe o amor pelos poetas alemães.” A primeira frase é do presidente da Alemanha, Joachim Gauck, e a segunda, da chanceler, Angela Merkel, ambas dirigidas a Marcel Reich-Ranicki, falecido no dia 18 de setembro. Foi esse judeu sem diploma, sobrevivente do Gueto de Varsóvia, quem recuperou o cânone literário alemão, rejeitado pela Europa a partir dos governos de Hitler, e reabilitou mestres esquecidos pelos próprios alemães por quase três gerações, como os também judeus Heinrich Heine e Kurt Tucholsky.

Em seus 93 anos, assinou 23 livros sobre literatura e outros 16 como editor, vendeu alguns milhões de exemplares com seus Kanons (cânones: de romance, contos, drama, poesia e ensaios) e cerca de milhão e meio com sua autobiografia, Mein Leben. Foi objeto de oito filmes, nove títulos de doutor honoris causa, 29 grandes prêmios culturais e deu seu nome à cátedra de literatura alemã na Universidade de Tel Aviv.

Nascido Marceli Reich em 2 de junho de 1920 em Wloclawek (Polônia), terceiro filho de um falido industrial polonês e de uma alemã cultivada, aos 9 anos foi enviado a Berlim. A ditadura nazista o impediu de ingressar na universidade por ser judeu e também por isso o deportou para a capital polonesa, em outubro de 1938. Quando a Alemanha invadiu a Polônia, foi trancado com sua família no Gueto de Varsóvia e ali designado tradutor do chamado “Conselho Judeu”, que representava internamente os 450 mil encarcerados junto ao comando nazista. Foi o que o manteve vivo.

Conheceu sua esposa (Teófila, que o acompanharia até morrer, em 2011) em 21 de janeiro de 1940, quando sua mãe mandou-o consolar a vizinha, cujo pai recém havia se enforcado. Casaram-se às pressas dois anos depois, quando os nazistas decidiram transferir todos que não pertencessem ao conselho – sua família foi então enviada à morte. Em janeiro de 1943, durante as últimas evacuações do gueto, o casal aproveitou um descuido da guarda e safou-se da perseguição.

Entrou para o partido comunista polonês e em 1948 era chefe do consulado em Londres. Passou a chamar-se Marceli Ranicki (pronuncia-se Ranítski), pois Reich lhe trazia problemas. Um ano depois era chamado de volta a Varsóvia, suspeito de espionar para Israel, passando alguns dias numa cela. Percebeu que a razão de seu degredo era de novo o antissemitismo. Voltou à literatura, como especialista em alemão para uma grande editora local e promotor de saraus com autores como Heinrich Böll, Max Frisch ou Bertolt Brecht.

Em 21 de julho de 1958, viajou para Frankfurt com 20 marcos no bolso e decidido a ficar. Tentou a sorte no Frankfurter Allgemeine Zeitung, sendo recebido com descrença. Contornou a situação através de amigos escritores e retomando seu nome alemão: passou a chamar-se, definitivamente, Marcel Reich-Ranicki. Em 1960, seguiu para Hamburgo, onde responderia por literatura no semanário Die Zeit até 1973. Depois, tomaria o lugar do crítico que o esnobou no FAZ, ficando até 1988.

Já de início, bateu de frente com a peroração que na época reinava na crítica literária alemã, onde ninguém desgostava de nada. Criou então suas marcas mais famosas e temidas: argumentar claramente, sempre evitando palavras estrangeiras e jargões, sobre o que lhe agradava ou incomodava numa obra e o porquê, indicando ao final inequivocamente o polegar pra cima ou pra baixo. Segundo a revista Der Spiegel, que lhe dedicou três capas, ao término de seus programas de TV editoras decidiam ainda à noite sobre novas tiragens, livrarias encomendavam remessas, autores e seus admiradores abriam champanha – uns para celebrar, outros para esquecer.

Em 1988, quando começou Literarisches Quartett (programa de TV que duraria até 2001 e rapidamente tornaria Ranicki superstar), Peter Handke diria a um grande jornal que não lamentaria sua morte. Martin Walser claramente fez de Ranicki personagem de dois livros: Ohne Einander (1993) e Tod Eines Kritikers (“Morte de um Crítico”, 2002). O segundo desencadeou uma polêmica nacional, que envolveu antissemitismo, durou dois meses e teve dezenas de intervenções de diversos intelectuais em todos os grandes veículos do país.

Com Günter Grass, teve outra polêmica nacional, que começou em agosto de 1995 na capa do Der Spiegel, onde Ranicki aparece rasgando em dois o livro Um Campo Vasto, desse então futuro Nobel. Desconstruiu o protagonista da história, revelando mais que uma inspiração em Theodor Fontane, mais um bom número de apropriações duvidosas. Foi particularmente impiedoso com a frase: “Tudo que se chama alemão é dominado pela mediocridade”. E justificou: “Nessa visão, sou especialmente sensível desde que pela primeira vez fui confrontado com um comentário antissemita – eu era ainda criança e estava numa escola alemã. Receio nacionalizações e generalizações do tipo. Nós já sabemos aonde isso levou. Agora você talvez sinta que venceu e eventualmente dirá que a frase não é sua, mas do grande Fontane. Pode até ser, mas em todo caso: besteira segue sendo besteira.”

Talvez a principal chave do sucesso de Ranicki tenha sido a paixão por simplificar. “Certa vez ele disse: Não me interessam histórias de esquimós. O que fazer com isso? Assim, fácil, ele formulava seus argumentos. Difícil era depois desconstrui-los. Isso era o genial nele”, resumiu Hellmuth Karasek, colega de Literarisches Quartett. Sua maior diretriz ele repetiu várias vezes na televisão e nos jornais: “O maior dos imperativos é entreter.”

Em 27 de janeiro de 2012, na sessão que anualmente comemora a libertação de Auschwitz no Bundestag, o parlamento alemão, Marcel Reich-Ranicki formularia suas últimas frases memoráveis: “Até hoje não se passou um dia sem que eu me lembrasse do gueto. Aquilo ninguém esquece. A música e a poesia me ajudavam a suportar. Quando a qualquer momento você pode ser deportado para um campo de concentração, não há calma para se ler Guerra e Paz, ou Anna Karenina, mas poesia, sim.”
----------------------
* Jornalista
 Imagem: Grafite com retrato de Reich-Ranicki na parede de uma livraria na cidade alemã de Mendel e as capas dedicadas ao crítico pela revista Der Spiegel
Fonte: ZH on line, 05/10/2013

Nenhum comentário:

Postar um comentário