Graça Taguti*
A solidão fecunda, enraizada nos jardins
das legítimas escolhas
pessoais gera milagres,
encantos, deliciosas singelezas.
Quem nunca sentiu em plena luz do dia o mundo cinzento e circunspecto
à sua volta, levante a mão. As palavras saindo da boca sem ordem e sem
juízo. O discurso atrapalhado, estendendo os braços por detrás de
sentenças inteiras sobrepostas umas sobre as demais.
Brincadeira ainda verde de cabra-cega, esgueirando os restos de
infância através de um corpo decididamente maduro. Quem nunca ansiou
compor de quietude seus gestos e de apaziguamento sua mente? Confesse
enquanto há tempo.
Afinal, qual a diferença entre solidão e o se sentir solitário?
Solidão é algo imenso, calmo, às vezes até grandioso. Uma nobreza
ímpar — tingida, com frequência, de um lilás bem clarinho. Uma cor que
se mantém delicada e transparente mesmo em dias de vento forte. Em um de
seus líricos desabafos, Machado de Assis sentenciou: “Desesperado,
cuidei que o ar e a solidão me aplacassem o ânimo”.
Os dicionários comentam da qualidade feminina e substantiva da
solidão. Entretanto, há controvérsias que se agitam nas definições.
Alguns arriscam entendê-la como um “estado de quem está totalmente só;
imerso em Isolamento moral e interiorização espiritual”. Outros atribuem
modalidades ásperas, ariscas, queixumes de abandono a esta palavra, que
se preenche inteira de suas singulares percepções.
Estados particulares de experimentar momentos quase orientais de
aprofundamento e introspecção. Um mergulho calmo e visceral, recheado
de possibilidades de se constatar como alguém único.
Faremos agora um passeio pelo cotidiano. Pela existência opaca de
muitos de nós, enfiados frequentemente em relacionamentos sem eco e sem
ruídos. A não ser diante das sublevações caseiras, em cujo contexto
antecipam-se fagulhas de raiva acumulada, impropérios contra a falta de
dinheiro, negado pelo marido para as multicompras sonhadas naquele
shopping sofisticado e inaugurado recentemente.
“Eu quero, eu preciso daquele vestido!” a mulher se exaspera, ameaça
iniciar um escândalo a varejo, dentro do quarto e sala sem varanda, e
nem vaga de garagem. Um antigo ditado sentencia: “antes só do que mal
acompanhado”. Mas quem aguenta a própria e mirrada companhia, confundida
com uma legião de avatares dispersos nas comunidades de infinitas redes
sociais.
Admita: você nunca se multiplicou em tantos personagens, nos dias
atuais e nem se sentiu tão sozinho. São as frágeis promessas da vida
virtual que o cercam, enroscadas em carências de todos os tamanhos e
procedências.
Não
é vergonha, porém, flagrar-se habitando um imóvel vazio, tedioso e
mofado que é o seu próprio corpo. Mais que depressa, entretanto, em
regime de semi-histeria, e diante de desalentadora situação, a ordem é
cobrir-se de tatuagens estranhas, algumas agressivas, bizarras,
iconoclásticas. Outras simbolizando seres míticos, tracejados por
dragões, serpentes e guerreiros medievais.
Conferir um upgrade na potência de existir, afinal, faz bem à
vaidade, e também, a um difuso sentimento de insegurança. Introduzir
piercings e próteses debaixo da pele, adereços de contornos surreais,
traduz-se em gesto solidário para combater a própria solidão.
Imiscuir-se no álcool e em outras deleitáveis drogas traz um conforto
sem precedentes a tantas criaturas toscas que vagueiam pelas noites à
espreita de minguados e provisórios contatos físicos. Porque
convenhamos, agora você tira sarro é do seu smartphone, dos tablets e
gadgets afins ávidos de sua plena atenção.
O casal almoçando aos sábados sempre no mesmo restaurante — há alguns
anos ungido pelo sagrado exercício do matrimônio, mas sem emitir
qualquer som, durante o pretenso momento de lazer, é digno de registro.
As conversas, convém elucidar, foram esquecidas no sótão da casa onde
moram, junto a utensílios em desuso.
Separação? Nem pensar. Imagine o que os casais amigos, as famílias em
comum comentarão do fracasso conjugal? Sorrir é preciso, a qualquer
preço — ainda que o esgar desarticulado no rosto sem esperanças resulte
de antidepressivos. Transmitir alegria a dois — mais um dentre os
indiscutíveis deveres sociais.
“Antes mal acompanhado do que só” — é a máxima vigente nos mínimos
intercâmbios cotidianos. Decidir pela separação assemelha-se para muitos
a um ato deplorável. Nada mais lamentável e desolador, resolver quebrar
as algemas daquela funesta união.
Poucos são os que fruem de uma solidão próspera, rica de pormenores
tão íntimos quanto os discretos recantos da alma. Solidão grávida de
inventividade, carisma, originalidade e prazer, por que não?
A solidão fecunda, enraizada nos jardins das legítimas escolhas
pessoais gera milagres, encantos, deliciosas singelezas. Talvez quase
ninguém se dê conta disso, nesta “Era do Vazio”, título, aliás, de uma
obra do pesquisador Gilles Lipovetsky, centrada no hipernarcisismo e
individualismo contemporâneos.
Sentir-se solitário, entretanto, faz-se acompanhar de muletas de toda
espécie. Drogas, sexo indistinto e em profusão, gula gigantesca, fala
interminável, saídas compulsivas para programas em todos os lugares,
apenas com o intuito de se livrar da própria tenebrosa e asfixiante
companhia.
Os eremitas, anacoretas, monges silentes deslizando por mosteiros
enormes soam incompreensíveis às regras de bem-viver coletivo,
delineadas pelas instituições, família, escola, igreja, antes mesmo de
nascermos.
A solidão para muitos significa exílio e prisão. Sem entender que
estes raros e consentidos encontros devem ser brindados especialmente
Com um champanhe dos deuses, sorvido prazerosamente em taças do mais
puro cristal francês.
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* Professora. Escritora.
Fonte: http://www.revistabula.com/969-educacao-vida-incluir-aulas-solidao/
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